Posfácio à edição japonesa
De 1982 a 2021: uma carta a Guattari

Félix querido,

Já se passaram quase três décadas desde que você nos deixou. Como o tempo voa.

Quando comecei a escrever esta carta, eu acabava de ver uma entrevista que você deu, um ano antes de tua morte, para um programa de televisão na Grécia, conduzido por um professor de filosofia. Em resposta a uma de suas perguntas, você descreveu o que entendia por amizade naquela altura de tua vida: “o amigo é aquele que se volta em direção a, que se volta em direção ao outro, e que constitui o outro. Não obrigatoriamente em uma relação de identificação, porque a amizade é paralela a uma relação agônica, mas que nessa relação singular com o outro, abre um certo universo. Na cumplicidade amistosa há sempre um terceiro termo que é o mundo que se está tecendo, que se está trabalhando. E a amizade socrática não é algo que se resolve em uma identificação homossexual, numa incorporação do outro; é algo que está ali para lançar o fio de uma teia que excede totalmente as relações interpessoais e que dá consistência a um certo tipo de objeto, os objetos conceituais” i, “os quais adquirem uma existência autônoma”, como diria Gilles.ii Suponho que vocês diriam ainda que, nessa teia, outros tipos de objetos podem igualmente surgir, ganhar consistência e se tornarem autônomos, uma mutação existencial, uma obra de arte, um poema…

Fiquei pensando nesta tua ideia de que a amizade lança o fio de uma teia e fui procurar saber como é isso na aranha, da qual você extrai esta imagem. Me surpreendi ao ler que ela lança um fio de seda de uma glândula de seu corpo e que o fio funciona como um sensor das forças que agitam a ecologia que a envolve naquele momento. E o mais surpreendente é que ela capta tais forças por meio de suas vibrações no contato de suas patas com o fio e que os efeitos dessas vibrações em seu corpo (os afetos) é o que lhe permite avaliar o que se passa em seu entorno, para orientar-se em suas ações. E, assim, uma teia vai sendo tecida entre, de um lado, as ações que ela cria em resposta aos afetos e, de outro, as respostas às tais ações por parte dos demais elementos que compõem aquele ecossistema.

Voltando para a amizade, é a partir das vibrações captadas por meio do fio que ela lança na ecologia que a envolve (que, como você nos apontou, não é apenas uma ecologia ambiental, mas também social e mental) iii, que uma teia se tece entre as respostas aos afetos destas vibrações que pulsam no corpo de cada um de seus componentes. Um universo vai, assim, ganhando consistência até se tornar autônomo. Tal universo não tem nada a ver com a relação interpessoal entre os amigos; mais do que isso, ele entra em suas respectivas composições, o que os transforma, assim como transforma a ecologia da qual são agentes.

Essa imagem me fez pensar na viagem de um mês que realizamos pelo Brasil, em 1982, da qual este livro é uma espécie de diário. Acho que posso dizer que, naquela viagem, o fio de uma teia lançado por nossa amizade embrenhou-se na ecologia composta pelas pessoas, grupos, ideias e situações que fomos encontrando pelo país. E a teia foi sendo tecida com arquiteturas variadas, nas quais universos foram emergindo e tomando consistência. Esse fio, aliás, já havia sido lançado em 1980, quando você veio ao Brasil logo depois que voltei.

Como muitos brasileiros, eu acabava de chegar após dez anos de exílio e, naqueles universos que começaram então a se abrir, pude tomar em mãos as rédeas da pulsão que corriam o risco de afrouxá-las, pela evocação da ferida do trauma que me levara a partir e que poderia ter reativado seu efeito infeccioso em meu desejo (como infelizmente aconteceu para alguns dos que voltaram). Aqueles universos me deram uma certa imunidade aos efeitos desta memória tóxica, o que me permitiu começar a agir desde o início.

Uma de minhas principais ações foi colocar em circulação o conceito de “micropolítica” que surgiu da amizade entre você e as múltiplas forças que agitaram a França em maio de 1968, assim como outros países europeus. Estes movimentos de experimentação coletiva foram desenhando linhas de fuga ao status quo até meados de 1970, quando estas começaram a ser instrumentalizados pela nova dobra do capitalismo, financeirizada e neoliberal, que já tendia então a tornar-se hegemônica, não só na França, mas por toda Europa Ocidental. É a potência pulsional de produção de formas daquelas ações coletivas do desejo que passou então a ser cafetinada pelo regime, para colocá-la a seu serviço.

No Brasil, como em outros países da América Latina, um mesmo movimento se deu naquele período, com experimentações micropolíticas que se convencionou chamar de “contraculturais”. Um nome que diz pouco daquilo que, de fato, acontecia, pois não tinha a ver com agir “contra” a cartografia cultural estabelecida, mas “a partir” de um outro lugar, em um processo de criação coletiva que promovia devires na cultura em seu sentido amplo, o que inclui as formas sociais, os modos de subjetivação e as políticas de desejo. E tal movimento foi igualmente interrompido, mas, diferentemente da Europa, a interrupção se deu pela repressão por parte de regimes ditatoriais sob os quais vários países do continente se encontravam e que as desqualificava e humilhava, colocando na prisão muitos de seus agentes. E esta desqualificação foi apoiada e replicada por boa parte da sociedade, para a qual aquelas linhas de fuga das formas do presente eram ameaçadoras. Esta atitude, de outra maneira, incluiu igualmente as esquerdas que, embora tenham desempenhado um papel inegavelmente essencial no enfrentamento da ditadura, não alcançavam o que tinha que ser enfrentado na esfera micropolítica. É certamente por esta limitação do modo de subjetivação que predominava nas esquerdas que nossas experimentações lhes pareciam irrelevantes, quando não irresponsáveis. Os germes de futuro de que essas experimentações eram portadoras foram soterrados sob o efeito do trauma da repressão, agravado por esta tripla humilhação.iv

Alguns anos depois, no período em que fizemos a viagem, eclodia um novo movimento, impulsionado pelo retorno daqueles embriões recalcados na memória de nossos corpos. Imaginei que o encontro com o conceito de micropolítica, que trazia consigo algumas pistas de acesso a estes embriões e para a tomada de consciência de que conquistar tal acesso é um ato de resistência política, seria o fio lançado pela amizade com as forças coletivas que buscavam trazê-los à tona para que pudessem germinar no presente. E a teia que disso resultaria, contribuiria para esta germinação.

E foi o que aconteceu: desde então este conceito-arma tem encontrado aqui muitas reverberações que participam do tecer de outras tantas teias e de universos que nelas tomam consistência. Neste sentido, é muito oportuna esta nova edição do livro, quarenta anos depois da viagem que lhe deu origem, pois encontra um cenário em que o combate micropolítico ganhou em força e consistência, proliferando cada vez mais velozmente e com mais acuidade, em distintos terrenos com suas expressões singulares, o que provavelmente vem acontecendo também no Japão.

De fato, o cenário que você encontrou no Brasil em 1982 era bem distinto daquele que já vinha se desenhando na Europa há uma década com a nova dobra do capitalismo. Para você, como para muitos, estava cada vez mais difícil suportar o mundo que se estabelecia nesta dobra, na qual o empreendimento colonial intrínseco ao regime atingira seu apogeu. É o que te levou a batizá-lo de “capitalismo mundial integrado”, um nome que, além de englobar o conjunto das regiões do planeta, abarca todas as camadas da existência, e não apenas dos humanos.

Você qualificou aquele período de “os anos de inverno”, usando inclusive esta expressão para intitular a coletânea de ensaios que você escreveu entre 1980 e 1985, publicada em 1986v. Você já captava indícios deste inverno na segunda metade dos anos 1970, quando a hegemonia do novo regime apenas começava a firmar-se na Europa. E você já antevia que este inverno seria longo, pela espantosa concentração de capital que as elites transnacionais tinham acumulado, além de contarem com a promessa de eliminação das barreiras instauradas pelo tipo de Estado então vigente, que começava a reconfigurar-se a serviço da agenda neoliberal. Na verdade, não é só esta dimensão concreta, macropolítica (termo que também devemos a você), que te permitiu antevê-lo, mas também (e, talvez, sobretudo) os sinais que você captava do alto grau de refinamento que a perversão do regime atingia naquele momento, em seu poder de manipulação micropolítica por meio das redes cibernéticas e das tecnologias da imagem. Você sabia que isso criava as condições subjetivas para a consolidação do império mundial do capitalismo, sua versão globalitáriavi.

No Brasil, quando fizemos a tal viagem em 1982, este cenário ainda não tinha se instalado. Vivíamos uma situação que, ao contrário, tinha o poder de te livrar daquele teu inverno interior. Era o período de ascensão ao poder de líderes políticos de esquerda, não só aqui, mas em muitos países da América do Sul, por efeito dos movimentos de redemocratização que se deram no contexto das respectivas ditaduras e que, naquele momento, levavam à sua queda. É verdade que a orquestração desta queda não se deve apenas a tais movimentos, já que teve a participação ativa do próprio capitalismo transnacional financeirizado, para o qual, naquele momento, Estados geridos por regimes autoritários haviam se tornado um estorvo. Se digo “naquele momento” é porque, a partir de certos rumos que a política tomou uma década e meia após a queda das ditaduras no continente, passou a ser necessário para o regime promover uma volta temporária ao autoritarismo, mas em nova versão, diferentemente sinistra. Como este retorno do recalcado, inscrito na fundação colonial deste continente, aconteceu depois que você se foi, vou descrevê-lo aqui para você.

Este novo cenário sinistro começou a se desenhar na América latina, no início do século XXI, em reação à vitória de líderes de esquerda para a presidência da república em diversos países do continente, como foi o caso de Lula, no Brasil. Pois é, Lula foi enfim eleito, exatamente como ele previa na conversa que vocês tiveram naquela viagem, que Laymertvii e eu editamos às pressas sob a forma de um livreto, para que circulasse durante a campanha eleitoral de sua primeira candidatura, no caso ao governo do Estado de São Paulo.viii Você deve se lembrar que, naquela conversa, ele te disse que a chegada do Partido do Trabalhadores à presidência levaria vinte anos. Saiba que isso de fato aconteceu, pois em 2002 Lula se elegeu, depois de três candidaturas malogradas. Ele teve dois mandatos, seguidos de um mandato e meio de Dilma Rousseff do mesmo partido e que havia sido guerrilheira durante a ditadura. Digo “meio segundo mandato”, pois este foi interrompido, em 2016, por um impeachment construído na base de uma falsa legalidade.

É óbvio que governos com agendas sociais são tão inadequados aos interesses do capitalismo financeirizado transnacional, quanto governos totalitários. A queda do governo, sob a forma de impeachment, como o que Dilma sofreu, é apenas um dos procedimentos da trama complexa de um plano concebido no decorrer da instauração do novo cenário do capitalismo nas Américas do Sul e Centralix. No contexto deste plano foi implantado um dispositivo multidimensional que chamei de “nova modalidade de golpe”x; e se a qualifico de “nova” é por várias razões, mas duas são particularmente evidentes.

A primeira é que o golpe acontece em diversas etapas e que se estendem por um longo período que pode durar anos (como foi o caso aqui). A segunda é que a tomada de poder não visa apenas o Estado, mas engloba a ecologia social e mental, ou seja, atua igualmente na esfera micropolítica. Com altos graus de perversidade, ela visa produzir modos de subjetivação adequados às necessidades do regime econômico em curso e às cartografias sociais que estes novos tipos de subjetividades desenham, o que inclusive permite tornar muito mais eficiente a tomada do poder do Estado.

Nesta outra esfera, golpes contínuos, supostamente “suaves”xi, vão sendo desferidos, por uma tríplice aliança entre o parlamento, o poder judiciário e as mídias (não só a televisão e a impressa escrita, mas também a internet, cuja tecnologia avançou muito desde que você se foi). Neste processo vai se produzindo pouco a pouco uma demolição do ideário de esquerda, em todos seus matizes e variações e, mais amplamente, do próprio ideário democrático. A operação se dá por meio não só de informações falsas, mas também, e mais perversamente, da associação de falsos significados aos termos que compõem os respectivos léxicos destes ideários, produzindo uma grande confusão semântica. Isso me levou a descrever esta nova modalidade de golpe como um seriado de tv com vários episódios, que grande parte da população assiste diariamente, excitada em seu voyeurismo como se estivesse diante de um Big Brother de Orwell na versão televisiva do século XXI , apostando em quem será o próximo a ir ao paredão.xii

Tais procedimentos micropolíticos geraram nas subjetividades um trauma especialmente difícil de atravessar, devido não só à demolição das referências que lhes serviam de guia, mas também e mais radicalmente, à confusão cognitiva que se havia instalado em suas mentes, cuja reconstrução levaria um bom tempo, o que permitiria a plena instalação da nova dobra do regime. A demolição chega a um tal ponto que, nas populações mais precarizadas, atinge a própria memória da experiência de melhores condições de vida que haviam conquistado sob os governos do Partido dos Trabalhadores. O enredo mentiroso que demonizou estes governos, substituiu-se à sua memória e teve o poder de recalcá-la.

No Brasil, tal recalque vem de longe. Ele começa no trauma colonial e da escravidão, reforçado pelo trauma das várias ditaduras, cuja violência jamais foi publicamente reconhecida, o que implica que seus responsáveis jamais tenham sido punidos. Isso impediu sua elaboração pela sociedade brasileira, condição necessária para mitigar sua repetição. Resulta desta patologia histórica que seus efeitos, inscritos na memória como um eterno presente, estejam sempre prestes a ativar-se e a retomar a cena. Quando isso acontece, como é o caso na atualidade, tendem a predominar respostas reativas igualmente inscritas no imaginário da sociedade brasileira, respostas que funcionam como dispositivos de defesa psíquica, cujo objetivo é apaziguar temporariamente a angústia oriunda do terror provocado pelo retorno do recalcado. É isso que cria, no atual contexto, as condições micropolíticas de identificação com figuras como Bolsonaro, atual presidente do Brasil, assim como para o recalque da memória do que havia sido conquistado. Esta é a astúcia da nova modalidade de golpe pelas elites financeiras que lhes deixa o terreno livre para ocupá-lo plenamente com apoio massivo e a garantia de que este apoio terá suficiente duração para que a ocupação se complete, aniquilando qualquer possibilidade de resistência.

Para fazer este trabalho sujo, tais elites se serviram de figuras políticas da pior espécie, como seus “laranjas”, que elas jogariam no lixo da história, quando estes já tivessem limpado o terreno de qualquer vestígio de democracia, para sua triunfal tomada de poder. O que elas não previam é que, apesar de terem sido vitoriosas na deposição dos governos, na sequência, o tiro sairia pela culatra. Não só porque tais laranjas pegaram gosto pelo poder e nele se instalaram tornando-se maioria, mas também porque um dos episódios do roteiro desta nova modalidade de golpe consiste em buscar, entre tais laranjas, figuras com perfil adequado para serem construídas como candidatas às eleições presidenciais, em contraponto a líderes de esquerda. É que tais líderes, então no poder com apoio massivo, teriam grandes chances de se reeleger (Lula, por exemplo, chegou a ter 87% de aprovação em 2010).

Instaurou-se assim um novo tipo de populismo em vários países (entre os quais o Brasil), geridos por psicopatas energúmenos, cuja crueldade é levada ao extremo, impulsionada por uma vontade irrefreável de aniquilação do outro para seu gozo necropolítico. Obviamente, esta situação passou a ser um estorvo para o capitalismo financeirizado que os colocou no poder.xiii

O Brasil é campeão deste tipo de trabalho sujo, empreendido por políticos de quinta categoria e de pálida expressão pública. Para te dar um exemplo deste trabalho, Bolsonaro, um destes políticos abrutalhados e insignificantes, selecionado entre os laranjas para ser construído como candidato à presidência, era deputado federal, em 2016, quando o congresso votou o impeachment de Dilma Rousseff. Tendo a votação sido aberta, ele dedicou seu voto ao coronel que havia torturado Dilma com requintes de crueldade, quando ela se encontrava presa no período da ditadura. A votação foi transmitida ao vivo para todo o país, não só pela rede Globo (a mesma do Big Brother), mas por vários outros canais de televisão e, também, por portais de notícias na internet.

O destaque dado a seu voto pela mídia foi parte da construção de seu personagem para a presidência, construção que teve início em 2014 quando ele se propôs como candidato de seu partido, com apoio de generais da ativa e da reserva. Para completar o plano, Lula foi condenado em 2017 e preso em 2018, por meio de um processo fraudulento, que impediu sua candidatura à presidênciaxiv. E, três anos após a cena macabra de seu voto pelo impeachment, este deputado tosco e irrelevante ganhou a eleição, apoiado pelo tipo de massa que, naquele momento, já havia se formado, por obra dos procedimentos micropolíticos executados nas etapas anteriores do golpe. Como esperado, esta parte da sociedade brasileira identificou-se plenamente com o populismo calhorda que caracteriza essa figura (para você ter uma noção do grau de truculência que caracterizou sua imagem construída para a campanha eleitoral, em todas as mídias e aparições públicas, ele se apresentava fazendo um gesto com os dedos de suas duas mãos performando revólveres em posição de tiro). E a massa o ovacionou fervorosamente, chamando-o de “mito”, seu mito supostamente salvador.

Você certamente está imaginando que se trata de uma massa “fascista”. Essa associação faz sentido, mas desde que guardadas as devidas diferenças em relação aos procedimentos de produção deste fenômeno, próprio aos regimes que receberam este nome no século XX. Destaco aqui brevemente duas destas diferenças.

A primeira é a diferença entre os tipos de enredo que destorcem a realidade numa espécie de delírio fanático, característica dos regimes totalitários modernos, cujo objetivo é produzir subjetividades a serviço de seus desígnios. O enredo adulterador do nazi-fascismo era futurista, delirando um glorioso novo tipo de sociedade que se instauraria sob o império ariano, após a limpeza da suposta escória da civilização que engloba todos seus outros. Enquanto que o enredo delirante imposto sobre as massas pela nova modalidade de poder baseia-se num retorno a valores anteriores ao Iluminismo, projetando sobre o mesmo todos os males do presentexv. A crítica a esta cultura, neste caso, não tem o sentido de promover a invenção de outros modos de existência, livres das violências, implícitas ou explícitas, contra a vida, que lhes são próprias. Ao contrário, o que esta crítica reivindica é uma volta às formas de um passado mitificado, o que implica não só a negação do presente, mas ainda mais grave, a interrupção do processo coletivo de criação de futuros para fazer face a esta violência.

A segunda diferença é que não se pode comparar a máquina de propaganda radiofônica baseada em tais enredos falsificadores dos regimes fascista e nazista com a potência que tal máquina adquiriu com as novas tecnologias de comunicação e informação em rede. Diferentemente do alcance do rádio naquele contexto histórico que emitia um só e mesmo enredo deturpador da realidade para a população em seu conjunto, as novas tecnologias tem a possibilidade de transmitir suas mensagens enganosas a milhares de pessoas e em tempo real. Acrescenta-se a isso, a possibilidade de multiplicar ao infinito sua difusão, pelo fato de serem produzidas por robôs, além de aumentar significativamente sua eficácia pelo uso de algoritmos, um procedimento inspirado nas técnicas da publicidade comercial.

Por meio destes algoritmos, os destinatários são organizados por grupos de classe, raça e gênero que incluem, em alguns casos, grupos de perfis psicológicos (nos Estados Unidos, onde esta tecnologia é mais refinada, utiliza-se inclusive estruturas clínicas da psicanálise). Isso permite que se criem enredos específicos para cada um deles o que aumenta significativamente seu poder de mobilizar identificação. Neste novo cenário, até inventou-se um termo, fake news, para designar este tipo de mensagem denunciando seu conteúdo fraudulento. Apesar do teor crítico deste termo e das inúmeras tentativas jurídicas de impedir a divulgação destas mensagens, não se logrou até hoje desmantelar a credibilidade das mesmas e, consequentemente, reduzir seu poder de mobilização.

O capitalismo financeirizado, como eu te disse, participou da construção da candidatura de Bolsonaro. Sua aposta era que, enquanto ele desempenhasse o papel de mobilizar este delírio nas classes média e mais pobres por identificação com sua figura, a agenda neoliberal seria executada pelo Ministro da Economia, um daqueles Chicago boys, cujos colegas chilenos foram os mentores da gestão econômica sob a ditadura de Pinochet. Ledo engano! Além de incompetente, o cara se mostrou incapaz de para fazer frente ao delírio diabólico do presidente, seu chefe, e seu prepotente e inabalável narcisismo, próprio da psicopatia. Bolsonaro é o mais repugnante deste tipo de psicopatas, recentemente no poder em vários países. Outro deles, aliás, é Trump, Presidente dos Estados Unidos de 2016 a 2020. Cito este exemplo porque, curiosamente, sua figura já chamava tua atenção há mais de três décadas (você o menciona em teu livro As três ecologias, publicado três anos antes de tua morte), quando sequer seria possível imaginar que uma figura tão grotesca se tornaria presidente da maior potência do capitalismo mundial.

Para agravar a macabra situação atual do planeta, no final de 2019, eclodiu a pandemia que te mencionei, alastrando-se por toda parte numa velocidade alucinante, tão ou mais violenta do que a gripe espanhola, do final de 1917. O índice de mortalidade pela covid, como é designada a infecção respiratória aguda causada pelo coranavírus SARS-CoV2, é alarmante (no Brasil, chegou-se recentemente a 4.000 mortos por dia). É que ele provoca também doenças em outros órgãos e que se agravam por terem efeitos umas sobre as outras. O cenário mundial é de colapso dos sistemas de saúde, de aumento exponencial de taxas de desemprego e de precarização cada vez maior e mais extensa de populações mundo afora, o que as lança na mais absoluta miséria. A pandemia ainda persiste dezessete meses depois de seu início e, ao invés de regredir, tem se tornado cada vez mais fatal. É que o vírus não para de sofrer mutações que atacam outros órgãos ainda, o que agrava mais o quadro e torna sua propagação cada vez mais acelerada. Tais mutações acontecem quando a pandemia pareceria estar contida nos países cujos dirigentes adotaram severos protocolos, como o isolamento social absoluto e outras medidas sanitárias drásticas. Obviamente, tais medidas jamais foram tomadas em países governados por estes psicopatas infames, cuja necrogestão tem levado o caos a seu máximo limite.

No Brasil, por exemplo, tais medidas foram desde o início desprezadas pelo delírio negacionista de seu presidente. Para te dar uma ideia do nível de absurdo a que chega seu negacionismo, beirando a caricatura, ele circula publicamente sem qualquer proteção, tocando seus fiéis e lhes repetindo, como num mantra macabro em tom histriônico, que aqueles que se protegem são covardes, chamando-os pejorativamente de “maricas”, do alto de sua homofobia machista e obscena. E ao mantra se agrega sua insistência diabólica em indicar um suposto tratamento precoce com medicamentos cuja eficácia foi categoricamente desmentida pela ciência. Com seu autoritarismo necronarcisista, ele ordena esta criminosa indicação ao Ministro da Saúde que deve acatá-la sob pena de ser demitidoxvi e distribuir tais medicamentos para a população em kits-covid, como foram oficialmente chamados, que prometem milagres e para cuja fabricação foram gastos milhões de Reais com dinheiro público. Esta operação mascara sua recusa genocida de comprar a quantidade de vacinas necessária para imunizar o conjunto da população e de fazê-lo na velocidade necessária para conter a pandemia.

Além desse mantra, ele sustenta com uma de suas teorias conspiratórias, que a defesa do confinamento e do isolamento social por governadores, prefeitos, deputados e juízes do Supremo Tribunal Federal é um ataque aos cidadãos, não só para tolher sua liberdade, mas ainda pior para levá-los ao suicídio. Acrescentando que tais medidas só são tomadas para prejudicar a economia, a conclusão de sua teoria delirante é que tudo isso teria por único objetivo minar sua popularidade.

O negacionismo, uma das principais características deste tipo sinistro de populismo, têm o poder de mobilizar identificação massiva. No caso de Bolsonaro, tal identificação legitima e reforça o negacionismo que já se instalara em parte da sociedade brasileira, aquela tal massa que o levou ao poder. Desde então o negacionismo só tem se potencializado, produzindo uma espécie de delírio coletivo que se manifesta em altos brados pelas ruas dos grandes centros urbanos contra supostos inimigos e pela volta do regime militar, emitidos por corpos envoltos pela bandeira do Brasil. Para você ter noção da escala deste delírio que povoa o imaginário dessa massa, ressurgiu com força e convicção o teoria mirabolante do Terraplanismo, segundo a qual a terra seria plana, uma teoria marcada pelo combate da religião contra a ciência, para sustentar a ideia da existência de Deus.

Não vou comentar aqui todo o caos, não só sanitário, mas também econômico, social e mental, gerado no país por esta nova modalidade de golpe que atinge seu apogeu neste governo, pois me tomaria páginas e mais páginas. Para que você possa ter uma vaga noção desse estado de calamidade, não só no Brasil mas por todo o planeta, vou me ater à pandemia, trazendo aqui apenas algumas de suas consequências que me parecem significativas e das quais me dei conta quando contraí o vírus.

Entre as patologias provocadas pelo vírus, há uma, considerada a menos grave por não levar à óbito, mas acomete quase todos os corpos infectados, com ou sem outras patologias. Seus sintomas podem permanecer por meses depois da cura, sem que se possa prever sua duração ou mesmo se terá fim algum dia, como é o caso do HIV que veio para ficar. Trata-se de uma desregulação do sistema nervoso autônomo que gera uma interrupção da agência do corpo, não só em suas ações concretas, mas também em suas capacidades sensoriais e cognitivas, necessárias para conduzir tal agência.

O que acontece é que, quando se tem a intenção de agir, o corpo recusa-se a cumprir seus automatismos para que o movimento se faça. Isso lança o sujeito numa espécie de letargia que ele tende a interpretar como cansaço, seu aspecto mais superficial, que é a única experiência de sua memória que ele pode associar com seu estado. Já a perda de capacidade sensorial consiste numa hiposensibilidade que atinge o olfato e o paladar e, mais gravemente, a própria capacidade de decifração sensorial dos sinais que nos vêm do mundo. O sujeito tende a perceber apenas a falta de olfato e paladar, os mais óbvios destes sintomas. E a diminuição da capacidade cognitiva, que acompanha estas deficiências, consiste numa rarefação da memória e na impossibilidade de imaginar e pensar.

Este conjunto de sintomas tem por efeito interromper o ritmo frenético que se impõe ao desejo, tanto no tempo como na circulação pelo espaço, essa engrenagem essencial da máquina capitalista. A isso se soma a interrupção de grande parte das atividades sociais pelas medidas de isolamento que mantêm as classes médias e elites confinadas por meses em suas residências, embora muitas delas, tomadas de negacionismo pela onipotência própria à sua posição de classe, se recusem a se manter em casa. Enquanto que as classes mais populares não podem se dar ao luxo do confinamento por uma questão de sobrevivência. Elas são obrigadas a escolher entre o risco de serem contaminadas e, se acometidas pela versão mais grave da doença, morrerem pela falta de acesso a um atendimento médico de qualidade, ou o risco de morrer de fome, que pode ser o destino que as espera se não saírem de casa para trabalhar. Embora, também nestas populações haja negacionismo, mas neste caso para proteger-se psiquicamente do terror provocado pelo agravamento que a pandemia trouxe à sua já miserável condição.

Continuam assim as aglomerações como se nada estivesse acontecendo, em ambos os casos autorizadas e estimuladas pelas mórbidas palavras de ordem do presidente. Neste contexto, grande parte das atividades sociais, principalmente das classes médias e elites, migraram para o virtual, o que as mantém igualmente confinadas, mas na infosfera, limitando o espaço de suas relações às telas dos computadores e celulares, inclusive no campo profissional. Neste âmbito, o ritmo tornou-se ainda mais frenético, já que não há mais separação entre o espaço da casa e o espaço do trabalho (calcula-se que a produtividade aumentou em 20% em relação ao trabalho presencial).

A experiência da dupla interrupção do ritmo habitual (do tempo e da circulação no espaço), somada ao duplo confinamento no espaço (concreto e virtual), favorece a fabulação de toda espécie de teorias conspiratórias, que se somam àquelas do presidente e são por elas legitimadas. Trata-se de ideias inadequadas que emergem na sociedade nestes momentos de trauma coletivo e que se projetam sobre seu mal-estar para dar-lhe um sentido e apaziguar o terror.

A única fabulação que parece escapar destes delírios reativos é que o vírus talvez seja uma resposta do ecossistema ao desequilíbrio produzido pelos humanos que hoje se aproxima de um limiar de irreversibilidade, consequência do regime dominante em sua ânsia de cafetinar a vida em todas suas manifestações para colocar sua potência de produção de formas a serviço da acumulação de capital econômico, que é também um capital político e narcísico. É óbvio que tal resposta não vem de uma intenção consciente por parte do ecossistema ou de qualquer força oculta que estaria nele operando; pensá-lo assim seria mais uma das teorias conspiratórias. Considerar esta hipótese vem mais de uma tomada de consciência da agência de todos os componentes do ecossistema para devolver o ritmo ao fluxo vital, a cada vez que este se vê interrompido nas formas do presente, o que implica um processo de criação que as transfigure. A mutação do vírus parece acompanhar a velocidade da mutação das estratégias do capitalismo para manter em exercício a cafetinagem da pulsão.

O humano é o único componente do ecossistema cuja agência é desviada desta finalidade para ser colocada a serviço de tal cafetinagem. O que torna possível este abuso, intrínseco à micropolítica dominante do capitalismo, é a separação do sujeito de sua experiência enquanto vivente, condição que faz dele um componente do ecossistema que, como você apontou em As Três Ecologias, não é apenas ambiental, mas também social e mental. xviiCom isso, fica vedado o acesso aos efeitos do ecossistema em seu corpo, impedindo o sujeito de situar-se no que lhe acontece. É isso o que o leva a projetar ideias inadequadas sobre estes efeitos, o que faz com que suas ações, conduzidas por estas ideias, terão consequências nefastas para o ecossistema como um todo. Apelando para dois conceitos que você e Gilles propuseram no rastro de Espinoza, podemos dizer que o que fica vedado é a conexão com as “afecções” (os tais efeitos do ambiente no corpo). Isso impede que o sujeito possa transformar a passividade das afecções em afetos ativos, avaliadores das causas adequadas do que lhe acontece e que deveriam orientar suas respostas para que a vida retome o ritmo em seu fluxo.

A experiência da desregulação neurológica provocada pelo vírus, tende a reforçar esta desconexão (que, no caso do Brasil, já vinha se intensificando por obra daqueles procedimentos micropolíticos do golpe, agravada pela identificação com o presidente, cuja base foi esta construção anterior). A suspensão no sujeito dos hábitos de seu modo de existência, somada à impossibilidade de se reconhecer em decorrência destes sintomas neurológicos, gera um estranhamento perturbador diante do qual prevalecem respostas reativas: o sujeito tende a interpretá-lo como sinal de um perigo de desmoronamento, sendo então tomado de pavor. Lançado assim mais intensamente no buraco negro da desconexão, a memória dos traumas e os fantasmas a eles associados tomam a cena. Projetados sobre a causa do que lhes acontece, os fantasmas passam a orientar a perspectiva a partir da qual o sujeito a interpreta e conduz as ações do desejo em busca de saídas. Com isso, o estado se agrava, pois a suas causas neurológicas agregam-se sequelas psíquicas.

A maioria dos médicos e psicólogos,x por estarem também eles cada vez mais destituídos desse elo com sua condição de vivente (não por acaso, a psiquiatria biológica e a psicologia cognitiva ganharam novo alento nas últimas décadas, a contracorrente do que acontecia nos anos 1970 e 1980), tampouco se dão conta do que acontece em seus pacientes. Passam então a projetar sobre aquilo que veem do paciente e o que escutam de seus relatos, os diagnósticos de depressão, crise de ansiedade ou psicose. Em função disso, eles propõem tratamentos farmacológicos ou comportamentais que passam ao largo das reais causas do quadro, podendo inclusive agravá-lo por impedir ainda mais o acesso às mesmas. É que ao atuar apenas na face manifesta desta experiência subjetiva, desconsidera-se a complexa dinâmica psíquica que a provoca, sua face invisível, e sua igualmente complexa relação com os sintomas neurológicos.

Pois é, Félix, a coisa por aqui vai de mal a pior, muito diferente daquilo que você imaginou que estava por vir em teus encontros no Brasil, onde você se deparou com um estado de coisas que tinha o poder de te arrancar da melancolia provocada pelo rigoroso inverno político-cultural que se instalara a Europa. E diga-se de passagem, bem diferente também do que muitos de nós, brasileiros, imaginávamos na época e mesmo duas décadas depois, em 2007, quando Lula estava em seu segundo mandato presidencial. Lembrei agora de 2007 porque, naquele ano, em um novo prefácio que incluí na tal edição revisada de nosso livro para publicações em outras línguas, escrevi que estaríamos diante de um movimento irreversível, em certa medida, independente dos rumos que o Estado poderia tomar depois do governo do Partido dos Trabalhadores. Na época, não poderíamos imaginar que a esquerda seria violentamente varrida de cena e que o Estado tomaria rumos tão sinistros, a ponto de que o tal inverno político-cultural europeu que te dava calafrios pareceria um conto de fadas perto do que nos acontece hoje.

Mas não se deixe tomar pelo desespero com estas notícias, a coisa não se reduz à cartografia que acabo de traçar. Face à catástrofe da pandemia política, ressurgiram movimentos na esfera micropolítica, intensificando-se e alastrando-se por toda parte, o que ganhou mais força ainda diante da catástrofe da pandemia virótica que a ela se somou. Embora prevaleçam respostas reativas diante da parada da máquina capitalista por obra do vírus que impõe uma espécie de greve geral em escala planetária, à contracorrente surgem igualmente vigorosas respostas ativas. O estranhamento perturbador provocado pela parada da máquina no espaço e no tempo, somada ao ataque do vírus ao sistema nervoso, abre uma possibilidade, individual e coletiva, de desbloquear o contato com os afetos, ao invés de recrudescer sua obstrução (como acontece nas respostas reativas). Geram-se assim condições para a tomada de consciência da política de desejo a que as subjetividades estavam submetidas e do sufocamento da vida que tal política implica intrinsecamente em decorrência de sua drenagem para fins contrários à sua preservação.

É neste contexto, que, como te disse, a resistência micropolítica tem ido muito além do que acontecia em 1982, quando fizemos a tal viagem, momento em que começava a se reativar o combate nesta esfera, após ter sido interrompido nos anos 1970 pelas ditaduras na América latina (o tal movimento que, na época, recebeu o nome genérico de contracultura). São movimentos sociais que envolvem cidades inteiras e até mesmo países inteiros, e outros empreendidos pelas populações racializadas de toda espécie. Diante disso, a intuição de irreversibilidade que tínhamos na época em que fizemos aqueles encontros registrados neste livro, não só se confirma, mas hoje parece ainda mais certeira, o que não quer absolutamente dizer que estaríamos indo em direção a uma espécie qualquer de gran finale. É óbvio que em todo novo cenário ressurgem turbulências resultantes do embate entre diferentes graus de forças ativas e reativas, que correspondem a diferentes graus de potência pulsional, o que Nietzsche chamou de “vontade de potência”.

Assim como não caberia no espaço de uma carta te contar em detalhes o estado de coisas infernal que estamos vivendo desde que as pandemias política e viral tomaram conta do planeta, nem as mais diversas respostas sociais reativas a este cataclisma, tampouco cabe detalhar as respostas ativas que tem se agitado por toda parte criando outros paisagens, especialmente na América latina, onde a coisa tem estado mais quente, para o bem e para o mal. Mas posso te assegurar que se você estivesse aqui se livraria integralmente do marasmo daqueles anos de inverno e estaria totalmente envolvido nestas cenas. Sabendo disso, só para te dar um gostinho, vou descrever brevemente alguns dos movimentos de resistência micropolítica que vêm acontecendo, tomando um pouco mais de tempo para tecer comentários a respeito.

Darei quatro exemplos de populações racializadas nas quais tem avançado nos últimos tempos um movimento que inclui em seu ativismo a perspectiva micropolítica: feministas, afrodescendentes, indígenas e LGBTQI+. Na verdade, ações nesta direção não começaram neste século; elas vêm acontecendo ao longo de várias décadas, mas foram invisibilizadas por virem de camadas precarizadas da população e, sobretudo, de mulheres. E é, sem dúvida, nelas que se encontra o impulso que deu origem aos movimentos na atualidade.

Tais movimentos estão conseguindo desarmar uma operação própria da fábrica de inconsciente colonial-racializante-capitalística. Refiro-me à imposição de modelos universais e genéricos na condução das ações do desejo, por meio dos quais se produz uma homogeneização das subjetividades, que tende a ser naturalizada. O que sustenta esta dinâmica é o fato de que, como já disse aqui mil vezes e repito, os sujeitos sob o regime de inconsciente dominante se encontrem destituídos da tal conexão com os afetos da alteridade ambiente variável que os compõem e que os conduziriam a um constante processo de recriação de seu corpo-em-obra e do campo relacional em que este se encontra envolvido. O que este impedimento promove é, ao contrário, sua submissão aos tais modelos supostamente universais que os tornam homogêneos e os convertem numa espécie de bonecos de ventríloco.

São distintos modelos genéricos que operam em cada um dos terrenos em que eclodiram os quatro exemplos de movimentos micropolíticos que escolhi para te dar uma breve ideia do que tem acontecido: o gênero, a heteronormatividade/cisgeneridade, a raça e a etnicidade e, de quebra, o que chamamos de “Arte”, com A maiúsculo. O que estes movimentos micropolíticos contemporâneos logram instaurar é uma transfiguração mais radical das personagens submetidos aos modelos genéricos, o que tende a inviabilizar a reprodução da própria cena, assim como das demais personagens que compõem seu script.

Começo pelos feminismos, que tem por alvo todas as implicações da submissão do desejo à categoria genérica de « gênero mulher » e à lógica machista e patriarcal, segundo a qual se define a personagem que o tal gênero deve peformar. Transfigurações desta personagem vêm se alastrando e ganhando mais consistência, especialmente na América latina, onde os feminismos tem avançado mais radicalmente nesta direção. Tal personagem corresponde ao lugar que lhes é destinado na maldita classificação binária dos supostos “gêneros”, classificação e conceito tóxicos inventados por este mesmo regime, cuja reprodução lhe é micropoliticamente indispensável.

Refiro-me à figura da mulherzinha dependente histericamente do olhar do homem para ter uma imagem de si que lhe dê a sensação de existir e de ser valorizada socialmente, mesmo que não esteja mais confinada na vida doméstica, e que tenha conquistado consistência como profissional, ativista, etc. e que sua participação na esfera pública seja plenamente reconhecida. Aquela personagem que chamei de Penélope em um de meus textos em nosso livroxviii.

Ela pode inclusive estar macropoliticamente implicada na luta feminista contra a cena machista e patriarcal, mais especificamente contra seu parceiro de cena, o personagem opressor do suposto “gênero homem” (que chamei de Ulisses no referido texto). No entanto, do ponto de vista micropolítico, ao seguir performando o papel atribuído à sua personagem neste script , ela sustenta o papel designado para seu parceiro de cena. Sendo assim, ela participa ativamente da reprodução da dinâmica sufocante de relação entre eles, assim como da própria cena, que ela sustenta como seu próprio desejo. O que vem sendo interrompido nas transfigurações que se operam no contexto dos feminismos contemporâneos é, precisamente, o eterno retorno desta personagem.

Diante destas metamorfoses variadas da personagem do suposto “gênero feminino” absolutizado, revela-se uma limitação dos feminismos tradicionais, hoje chamados de “brancos” ou “liberais”. Apesar de sua inegável importância na luta que se dá na esfera macropolítica, por não se insurgir também na esfera micropolítica, este tipo de feminismo se mantém confinado na ficção tóxica da identidade de gênero, o que leva suas ativistas a continuarem a reproduzir suas Penélopes e, com isso, toda a cena. É verdade que este vetor do feminismo ainda está em vigor hoje, principalmente entre as mulheres brancas das classes médias e altas, mas vem perdendo seu protagonismo. Aliás, este declínio dos feminismos de tendência identitária tem mobilizado em suas ativistas atitudes reativas contra as linhas de fuga de suas parceiras contemporâneas, resposta defensiva previsível em subjetividades que se mantém acriticamente sob o poder do regime de inconsciente dominante e suas categorias universais, no caso, a categoria de gênero.

Imagino que você gostaria de saber que na origem destes novos feminismos, está o ativismo de muitas mulheres que há várias décadas vem levando em conta a perspectiva micropolítica em suas ações. No entanto, também neste âmbito, por se tratar de mulheres de camadas precarizadas (camponesas sem terra, habitantes das cidades sem teto, prostitutas, mães de santo, quilombolas, indígenas etc.), seus gestos micropolíticos foram (e continuam sendo) invisibilizados. Mas é inegável que eles estão na origem dos movimentos que, na atualidade, se expandiram e ganharam visibilidade. E mais do que isso, as mulheres se organizaram em grupos no interior dos demais movimentos sociais, atuando nos mesmos micropoliticamente, o que não só os tem transformado, mas torna manifesta a transversalidade entre eles, gerando as condições para que tal transversalidade seja considerada em suas ações, as tornando mais potentes e eficazes. Isso é particularmente sensível na América latina, razão pela qual estes movimentos são especialmente potentes neste continente. Diante do que acabo de te contar, posso te dizer que o horizonte do feminismo hoje é bem mais vasto do que o movimento feminista strictu senso, ativando linhas de fuga em vários âmbitos da vida social.

Não foram precisamente estas linhas de fuga que você e Gilles nomearam com o conceito de “devir-mulher”? Um conceito que não se restringe às mulheres (no sentido biológico do termo), mas se estende à posta em movimento de transmutação de todos as personagens imobilizadas em seu desejo, forçadas a desempenhar seu papel de boneco mecânico, cuja voz é a do ventríloco que emite palavras de ordem conduzidas pela categoria de gênero e por outras categorias, como esta, supostamente universais. O devir-mulher é aquela “linha de feiticeira” (outra ainda de suas invenções) que se ativa no presente, trazendo nesta ativação os embriões de futuro, cuja germinação havia sido interrompida por sua demonização nos séculos XVI e XVII, por meio do dispositivo de caça às “bruxas”, como foram pejorativamente qualificadas aquelas mulheres, dispositivo inventado no contexto da colonização e da fundação do capitalismo. Os corpos das mulheres que, na época, cultivavam estes embriões de mundo foram queimados nas fogueiras, vítimas desta estigmatização. Mas os gérmens permaneceram, tendo sido transmitidos a mulheres das gerações que as sucederam, recalcados na memória de seus corpos à espera de condições coletivas para germinar.

Que o dispositivo da caça às bruxas seja essencial na fundação do capitalismo já foi considerado e rigorosamente analisadoxix. Mas creio que você concordaria, Félix, que convém acrescentar que tal dispositivo é igualmente essencial para o regime de inconsciente que se funda com o capitalismo, pois nesta esfera, micropolítica, o que ele demoniza é o vínculo com os afetos, que era cuidadosamente mantido na subjetividade daquelas mulheres. Elas sabiam que tais afetos são portadores de gérmens de futuro, fruto da fecundação de seus corpos pelas forças do ambiente, e elas os cultivavam. Nesta esfera, a diabolização daquelas mulheres engloba suas práticas pulsionais guiadas pela bússola que os afetos lhes ofereciam. Refiro-me a seu saber “ecosófico”, como você o chamou, que lhes permitia conduzir a pulsão a seu destino ético xx, dando nascimento a novos mundos.

Não são, precisamente, estas práticas de cuidar do tal vínculo e de cultivar os gérmens de futuro, o que foi pejorativamente chamado de “bruxaria”? Sua demonização interrompeu os processos de criação que dariam corpo aos universos que os afetos anunciam a cada momento da vida, para em seu lugar instaurar o gênero como sobrecodificador, a conduzir o desejo em sua produção de mundos presentes e futuros. E não seria, precisamente, a retomada destes processos, o que estaria hoje sendo ativado na subjetividade destas novas feministas, pelo retorno dos gérmens recalcados na memória de seus corpos? Em outras palavras, não estariam elas logrando liberar a linha de feiticeira da paralisia resultante de sua estigmatização, lhe restituindo seu valor essencial para a vida humana e, consequentemente, para a vida do planeta?

O segundo exemplo é o do ativismo que opera nas dimensões da existência que tendem a estar submetidas às categorias genéricas de heteronormatividade e cisgeneridade, denominações que trazem em si a crítica aos padrões impostos neste âmbito pelo regime de inconsciente dominante. Também neste âmbito é impressionante o quanto tem se potencializado por toda parte a força da criação de novas figuras e suas relações. Hoje, tais figuras tendem a tornar patéticos as personagens da cena heteronormativa e cisgênera, assim como o script da dinâmica das relações entre eles, minando assim sua aura de universalidade e, consequentemente, seu nefasto poder de sedução sobre nós. São tantos os devires neste âmbito, tão variados e variáveis, e tão intensa e veloz sua proliferação que se inventou uma sigla para abarcar este conjunto aberto: LGBTQAI+. São as iniciais de várias de suas figuras, sendo que o “+” do final garante a abertura do campo para o surgimento de outros tantos devires, que tomam corpo em novas personagens e nos respectivos nomes que inventam para si, personagens e nomes que duram o tempo que continuam fazendo sentido. Garantir esta irrupção contínua de devires, como você via tão claramente, é o que importa neste movimento, assim como nos feminismos, e não a multiplicação de figuras universais com as quais cada um se identifica e as reproduz, mantendo a lógica do par binário, como se o único a combater fosse o binarismo. O que importa, de fato, é investir nos processos de singularização, nos quais se criam formas efêmeras para dar corpo de expressão aos afetos do momento, a contracorrente de tais figuras universais e homogeneizadoras que se impõem ao desejo, sejam elas binárias ou múltiplas.

O terceiro exemplo é o do ativismo que opera contra o poder da noção genérica de « raça » e suas implicações na vida social, neste caso, especialmente em sua violenta incidência sobre os afrodescendentes, oriundos da diáspora forçada pelo sistema escravocrata. Embora estes tenham se rebelado contra o racismo, em distintos momentos e de diferentes maneiras, desde o início da escravidão, os ativistas e intelectuais negros ganharam nas últimas décadas um protagonismo sem precedentes. No Brasil, eles têm ocupado cada vez mais espaços de visibilidade pública, antes reservados exclusivamente aos brancos, embora haja ainda muito espaço a ser ocupado. E o mais potente é que o modo como o fazem transforma o campo coletivo de enunciação, não só por sua presença concreta, mas porque, diferentemente dos movimentos anteriores, o modo como se dá esta ocupação não mais se limita à esfera macropolítica, como parecia prevalecer na época em que tivemos aquelas conversas com ativistas do movimento negro registradas em nosso livro. Digo “parecia”, pois já naquela época muitas mulheres negras atuavam micropoliticamente. Embora invisibilizadas nas organizações, sua presença, que se mantém ainda ativa ainda, está certamente na origem do rumo que o movimento tomou na atualidade.

Seus agentes passaram a atuar também micropoliticamente, não se contentando mais em reduzir seu combate à ocupação do lugar de fala que lhe foi destinado, um lugar no qual sua palavra estava interditada, e cuja ocupação visava tirá-la do silêncio. Se esta ocupação na esfera macropolítica é, sem dúvida, necessária para combater a iniquidade opressiva, própria da relação entre os brancos e seus outros sob este regime, ela é insuficiente para derrubar a cena da racialização, pois mantém suas personagens de vítima e algoz, que sustentam e reproduzem existencialmente o regime. Ao invés de se contentar com sua intervenção macropolítica de “ocupar seu lugar de fala” (intervenção que hoje, aliás, continua ativa, e não poderia deixar de ser, pois esta ocupação é ainda muito restrita), eles passam a agir também micropoliticamente e começam a “falar a partir de um outro lugar”, e é isso o que intervém ativamente no próprio campo de enunciação. Em suma, eles criam uma outra fala, na qual já se encarna um outro lugar que começa assim a tomar consistência na cena social.

Isso tem efeitos também em seu ativismo macropolítico que se torna mais potente, dada a perspectiva a partir da qual passam a atuar nesta esfera. As palavras e ações conduzidas a partir de tal perspectiva têm o poder de desmascarar a ficção da hierarquia racista que este regime instituiu entre os humanos, para melhor dominá-los. Ou seja, essa outra fala, sim, é capaz de arrastar consigo os lugares que lhes são previamente destinados neste regime racista, bem como a dinâmica de suas relações. Na produção teórica, tal deslocamento do lugar de fala (não só por intelectuais de descendência africana, mas também pelos intelectuais do próprio continente africano) tem gerado ideias que tornam pálidas e sem interesse muitas das ideias propostas por intelectuais acadêmicos brancos.

Irrompe-se assim outra linha de fuga, um “devir-negro” dos negros com potência de reverberar nos brancos, pelo menos naqueles entre nós que tenham alguma brecha, por menor que seja, para deixar-se afetar pelo outro, ao invés de restringir-se a projetar representações sobre ele (no caso, representações racializantes), sejam elas “do bem” (a empatia de esquerda) ou “do mal” (sua abjeção de direita).

Impulsionados por esta contaminação, muitos de nós nos engajamos num trabalho consigo mesmo, para identificar e desmontar o racismo em nossa própria subjetividade, reconhecendo o quanto ele conduz nossa relação com o outro, implicada em todas as dimensões de nossa existência. Isso nos tem levado a mudar o enfoque e o próprio foco de nossas práticas, inclusive profissionais. Aliás, foi precisamente este contágio que me levou a sair do campo institucional da arte, para o qual eu havia migrado uns dois anos depois de tua morte, mobilizada por movimentos micropolíticos que ali se agitavam naquele período, e onde permaneci por uns quinze anos. Te contarei brevemente sobre o movimento que estava então acontecendo no território da assim chamada Arte, outra destas categorias genéricas, supostamente universais, e você entenderá porque o desejo me levou a fazer dele meu novo território e, também, o que me levou a migrar novamente uma década e meia depois.

Sabemos que com o estabelecimento do regime de inconsciente colonial-racializante-capitalista, a potência de criação (que constitui a essência da vida, não só humana, para manter-se em seu fluxo) foi desviada de seu curso ético (que consiste em criar formas para tornar sensíveis os mundos latentes), em todos os campos da atividade humana, para ser drenada e capitalizada. O único campo em que tal potência era autorizada a manter seu movimento em direção a seu destino ético é o da atividade artística. A partir do século XVI, com o surgimento das galerias, espaços nos palácios especialmente destinados às coleções das assim chamadas “obras de arte”, coleções privadas e sem acesso público, começa se desenhar um novo campo institucional, designado pelo nome “Arte”. No decorrer do século XVII, inventou-se espaços para o acesso público de tais obras (os museus), o que se estabeleceu mais plenamente no século XVIII. Tal institucionalização contribuiu para consolidar a restrição do exercício da potência de criação a este domínio e sua desativação na vida coletiva; a produção que resulta desse exercício passa definitivamente a limitar-se obras de arte, uma espécie de monocultura. Ainda assim, mesmo que limitado à produção de tais obras, quando estas logravam cumprir o destino ético-estético da potência pulsional de criação, elas tinham o poder de contagiar aqueles que delas se aproximavam, abrindo-lhes a oportunidade de aceder aos afetos em sua própria subjetividade e de lançar-se num processo visando retomar em mãos o destino de sua potência pulsional, o que obviamente nunca está garantido.

No entanto, no contexto da financeirização do capital, o exercício ético de tal potência passou a ser interrompido também neste campo, para ser desviado deste destino e prestar-se à sua cafetinagem, como fonte privilegiada de especulação. É verdade que isso já se insinuava quando você se foi, mas levou duas décadas para ser plenamente reconhecido e, portanto, confrontado. Só, então, eclodiu um movimento de crítica consistente a esta cafetinagem, que incluiu curadores, diretores de museu, historiadores e críticos de arte e, obviamente, artistas. O movimento, chamado por alguns de seus agentes de “extradisciplinar”, foi um desdobramento da crítica institucional dos anos 1960-1970, que você conheceu tão bem e do qual você fez parte ativamente na psiquiatria, assim como em outros campos. A diferença entre ambos é que a resistência não mais se restringiu ao campo institucional da arte, passando a ter como alvo a liberação da potência de criação de seu confinamento neste âmbito, para ser ativada no campo social como um todo. Este novo movimento se estendeu da segunda metade dos anos 1990 à primeira década do século XXI e foi neste período que encontrei no mundo da arte um campo de cooperação coletiva para agir na esfera micropolítica.

Contudo, na segunda década do século XXI, o valor das obras definido pelo critério da especulação financeira se impôs a tal ponto no campo da arte, levando tão longe a cafetinagem da potência de criação também neste terreno, que se tornou intolerável nele permanecer. As ações dissidentes de toda espécie que sempre existiram no jogo de forças próprio a este terreno, tornaram-se escassas, tendo cada vez menos possibilidades de existir neste novo estado de coisas. É evidente que esse mal-estar não foi só meu, mas tomou conta de muitos dos que estavam envolvidos na resistência ao poder deste abuso. O mal-estar acabou levando o movimento a uma parada melancólica coletiva temporária. Paralelamente, naquele mesmo período, a força de combate micropolítico promovendo a reativação desta potência na vida coletiva vinha ganhado em intensidade e velocidade no campo das lutas antirracistas.

São estas duas situações simultâneas que levaram meu desejo a abandonar o mundo da arte e a migrar para este outro território. E foi essa migração o que me permitiu ver que o racismo é um dos operadores centrais do regime de inconsciente dominante. Isso me levou a substituir por “inconsciente colonial-racializante-capitalístico”, o conceito de “inconsciente colonial-capitalístico” que eu havia proposto em 2012, retomando e desdobrando o conceito de “inconsciente capitalístico”, que você havia proposto em parceria com Gilles, como você conta em nosso livro.

Para que você saiba minimamente como que se dava esta cafetinagem no terreno institucional da arte, naquele período, levando à irrupção de um movimento de resistência micropolítica, vou te dar um exemplo deste sequestro pelas forças reativas (o qual se mantém ainda hoje, cada vez mais despudorado) e de respostas micropolíticas a estas forças. Escolho um exemplo extraído de uma de minhas próprias experiências neste terreno, não só porque pode tornar o relato do embate mais vivo, por ser portador dos afetos deste embate na memória de meu corpo, mas também, e sobretudo, porque te dará uma ideia dos desdobramentos da publicação de nosso livro no Brasil, que imagino que você gostará de saber.

Pois bem, trata-se de uma de minhas primeiras incursões nesse terreno, a publicação de três ou quatro ensaios sobre a obra de Lygia Clark (lembra dela?),xxi duas décadas depois de lhe ter consagrado minha tese em Paris. Interessavam-me especialmente suas “proposições artísticas” (como ela própria as chamou), cuja realização envolvia uma ou mais pessoas que se dispusessem a vivenciá-las. Nestes textos, meu intuito era contribuir para dar palavras para a potência que tinham estas proposições de mobilizar a ligação com os afetos naqueles que passavam por estas experiências, sua potência micropolítica. A artista começou a criá-las a partir de 1964, depois de ter se dedicado à pintura e a uma espécie singular de objetos, nos quais esta potência já estava presente, mas ainda não com este grau de precisão e radicalidade em sua formalização.

O que me moveu a escrever é o mal-estar que me dava o modo como esta parte mais radical de sua obra e que ocupa a maior parte de sua produção, tendia e ainda tende a ser entendida, ou melhor mal-entendida, no terreno da arte, a ponto de perder completamente seu prestígio, sendo que as criações anteriores de Lygia tinham gozado de um significativo reconhecimento nacional e internacional. Tal mal-entendido inclui muitos dos curadores, críticos e historiadores da arte brasileiros que valorizam sua obra, mas que não levam esta parte a sério. Aliás, esta indiferença (e mesmo desprezo, em alguns casos) não é um mero acaso, pois da perspectiva do regime de inconsciente dominante que, neste aspecto pelo menos, impõe-se à subjetividade de certos agentes do sistema da arte, a potência micropolítica destas proposições (sua força maior) lhes é indigesta, produzindo um malestar. Digo, “neste aspecto, pelo menos”, porque muitas destes agentes traziam, e continuam trazendo, contribuições relevantes para o terreno da arte. Há outros agentes deste sistema, minoritários, que ao contrário dedicam-se a valorizar esta parte da obra, mas que, pela mesma razão, tendem a fazê-lo ignorando a perspectiva de sua potência micropolítica, gerando assim outros tipos de mal-entendido.

A nova conjuntura do tal sistema que se apresentou na segunda metade dos anos 1990, pela necessidade de ampliar o mercado de obras fetichizáveis para se prestarem à especulação financeira, criou as condições para que essa parte do trabalho de Lygia fosse incorporada. Suas proposições passaram, então, a estar presentes em todas as exposições cult do planeta. Tais exposições, no entanto, limitavam-se a apresentar as formas que tomavam as experiências que suas proposições mobilizavam, os objetos que Lygia usava para este fim, às vezes apresentados numa reprodução do espaço em que ela as realizava, como uma espécie de instalação onde uma performance teria acontecido, quando Lygia afirmou muitas vezes que o que ela fazia não era performance, a qual ela considerava como estando todavia submetida à lógica da representação, quando não do próprio espetáculo.

Nesta redução de sua obra, as formas eram destituídas da força do afeto que havia impulsionado sua criação e que a artista pretendia mobilizar naqueles que fariam a experiência. O mais grave é que, em algumas destas exposições, tais proposições eram representadas e, ainda por cima, por atores contratados para este fim, que a performavam cheios de sentimentos diante de espectadores excluídos de cena. Um espetáculo que matava a obra, já que ela depende da participação do assim chamado “espectador” para que se produza um acontecimento em sua subjetividade. O acontecimento de sua transmutação que incluía sua própria condição de espectador, pela abertura aos afetos que a obra tornava possível (o que nada tem a ver com a mobilização de sentimentos e, muito menos, com ser espectador de sentimentos alheios). É neste acontecimento que a obra, enquanto tal, se realizava.

Aquele meu mal-estar então voltou com tudo, inclusive por temer que talvez a circulação de meus textos tivesse, em parte, contribuído para que o sistema da arte encontrasse nesta fase da obra de Lygia uma fonte rentável de novas mercadorias-fetiche para sua compulsão especulativa. O que atraiu, de fato, a atenção do mercado para fazer dela uma oportunidade de investimento foram três exposições que aconteceram no final dos anos 1990. Meus ensaios tinham contribuído, em certa medida, para duas destas exposições, tendo uma delas apresentado pela primeira vez o conjunto da obra da artista, nele incluindo suas proposiçõesxxii , razão pelo qual publicou um destes ensaios em seu catálogo. Minha intenção ao escrever tais textos era a de contribuir para esclarecer esta parte da obra, de maneira que fosse valorizada e considerada como um desdobramento dos trabalhos anteriores da artista; mas eu não poderia prever que esta valorização teria um destino tão funesto.

Comecei então a me perguntar como poderia contribuir para liberar aquelas proposições artísticas de sua anulação pelo sistema da arte, naquele momento não mais por sua exclusão concreta, como havia sido o caso até então, mas pelo modo como, dez anos após a morte da artista, tendo sido esta parte da obra enfim admitida no território da arte, a potência de produção de acontecimento de que era portadora havia sido neutralizada, restando apenas sua carcaça.

Tenho que te contar que a própria Lygia havia se afastado do sistema da arte, justamente porque aquilo que estas proposições mobilizavam potencialmente, não encontrava possibilidade de atualizar-se naquele terreno. Isso a havia levado a migrar para uma zona borderline transversalizada pelas potências de criação e de cura, amálgama portador de potência micropolítica. Seu trabalho resultava da ativação dessas potências, revelando que elas são indissociáveis, tanto no campo da arte, quanto naqueles da clínica e da política. A volta de seu trabalho ao tal “sistema” da arte só teria valido a pena se sua linha de feiticeira produtora de acontecimento pudesse encontrar ali espaços possíveis de reverberação para ativar-se no presente.

Concebi então um projeto de arquivo, que não consistiria em fazer um levantamento da obra da artista e de documentações disponíveis sobre a mesma, os organizando segundo algum critério que eu teria estabelecido. Em vez disso, pretendi produzir documentos, criando um dispositivo que chamei de “arquivo vivo”. O projeto consistiu em fazer entrevistas filmadas com pessoas dos países por onde Lygia havia circulado, algumas por terem passado pelas experiências daquelas suas proposições ou escrito sobre elas, outras por terem convivido com a artista e outras, ainda, por estarem envolvidas em práticas, clínicas ou artísticas (principalmente corporais), nas quais eu encontrava certas sintonias com aquilo que Lygia procurava criar com seu trabalho.

A perspectiva que orientava tais entrevistas era clínico-política: não me interessava mobilizar nos entrevistados a memória dos fatos ocorridos nestas distintas experiências, mas sim a memória dos afetos que estas haviam gerado em seus corpos. Com isso, eu pretendia ativar a potência de contaminação micropolítica de que estas experiências eram portadoras. Filmar as entrevistas permitiria que esta ativação ficasse registrada em palavras e imagens, para que alcançasse um público mais amplo. Para que a pulsação dos afetos que tinham sido mobilizados nas entrevistas estivesse presente nestas palavras e imagens, foi necessário procurar profissionais capazes de “escutá-los”, para com eles compor a equipe cinematográfica xxiii.

Particularmente com os brasileiros que entrevistei, minha intenção era que a ativação desta memória pudesse contribuir para que fosse resgatada a potência micropolítica do movimento contracultural, especialmente forte e muito singular no país. Esta memória tinha sido recalcada em muitos de seus agentes, pelo trauma da violência que haviam sofrido por parte da ditadura, um trauma para cujo trabalho de elaboração, em meu caso, você contribuiu tão generosamente desde os anos de exílio. O arquivo consistiu portanto, igualmente, num dispositivo de elaboração coletiva, um trabalho que, como sabemos, não tem fim e se transmite de geração a geração.

Ativar esta potência recalcada tinha o sentido de colaborar para fazê-la germinar no presente não só na vida dos entrevistados, mas também, por contágio, na vida dos que teriam acesso a estas entrevistas, sobretudo nas novas gerações, já que tal germinação havia sido interrompida na subjetividade dos brasileiros pelo recalcamento desta memória.xxiv O arquivo acabou tendo 62 filmes de entrevistas, vinte das quais foram montadas e legendadas para compor uma caixa produzida no Brasil e na França.xxv Estes filmes fizeram parte de uma exposição da obra de Lygia nos dois países, da qual fui co-curadora com uma amiga suissa,xxvi e aparentemente eles mobilizaram o público: em sua versão brasileira, sempre havia gente, principalmente jovens, que passavam seus dias no museu, concentrados diante das telas onde estas entrevistas eram projetadas.

Agora posso, enfim, te contar o que esta história toda tem a ver com um dos efeitos de nosso livro no Brasil. Entre as pessoas que eu queria entrevistar, estavam as prostitutas da rua em que Lygia morava no Rio de Janeiro, com as quais ela convivia nos bares onde costumava passar suas tardes. Elas foram as primeiras a experimentar a proposição que a artista criou em sua volta ao Brasil, em 1976, e que seguiu praticando até sua morte xxvii.

Para localizar pelo menos alguma destas prostitutas, quarenta anos depois, recorri a Gabriela Leite, líder do movimento das prostitutas do Brasil. Começamos a conversar e logo descobrimos que havíamos sido colegas na faculdade de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP), o que já nos surpreendeu. Mas a surpresa não parou por aí; nos demos conta de que sentíamos um mesmo incômodo no mundo acadêmico, por não encontrar aquilo que procurávamos (embora ainda não soubéssemos como dizê-lo), nem na Sociologia, nem na militância marxista em suas várias versões que ali circulavam, cujo pensamento estava restrito a uma perspectiva que hoje chamaríamos de macropolítica. Em função disso, ambas havíamos saído dali no final do primeiro ano letivo, encontrando o que buscávamos em outros contextos: ela na vida boêmia da chamada Boca do Lixo, zona de prostituição popular em São Paulo e eu, em meu exílio em Paris, no pós-maio de 1968.

Mas as coincidências não pararam por aí: Gabriela me contou que nesta sua imersão na boemia popular paulistana, havia se tornado prostituta, tendo depois migrado para uma zona de prostituição igualmente popular em Belo Horizonte e, finalmente, no Rio de Janeiro, onde permaneceu. E comentou que, entre um cliente e outro, lia Foucault e outros filósofos, tendo um dia caído em suas mãos um livro de um pensador francês, um tal Guattari, escrito em co-autoria com uma tal Suely, brasileira. E ela prosseguiu seu relato, dizendo que a ideia de micropolítica que pulsava no livro, a partir dos encontros que estes autores haviam tido com brasileiros envolvidos, de diferentes maneiras, nos movimentos das assim chamadas minorias, lhe havia dado um insight acerca do que procurava desde a época da faculdade. E ela então contou que, em função disso, naquele mesmo ano (1987), teve a ideia de organizar o I Encontro Nacional de Prostitutas.xxviii Surpresa com este relato sobre as reverberações do livro, eu lhe disse que a tal Suely era eu. Nos abraçamos, comovidas com a descoberta de que, ainda muito jovens, havíamos compartilhado, sem que soubéssemos, um mesmo ambiente universitário, onde, mobilizadas por um mesmo incômodo, ambas tínhamos migrado para outros contextos nos quais, embora tão distintos, pudemos encontrar o que procurávamos. Isso tornava evidente para ambas que, embora macropoliticamente tais contextos fossem tão diferentes e tão distantes segundo a maldita hierarquia imaginária qee se impõe à vida social, do ponto de vista micropolítico, havia entre eles uma forte sintonia que os tornava muito próximos.

Mais do que isso, o que nos comoveu é que havíamos nos reencontrado dezessete anos depois, sem que o soubéssemos, por meio de um livro editado por nós dois a partir de uma agenda de encontros que fizemos pelo Brasil, que organizei quando retornei do exílio, com a intensão de colocar a ideia de micropolítica em diálogo com o que os brasileiros estavam vivendo na época. Como te disse, no início da carta, a intuição que havia mobilizado esta decisão é de que este encontro produziria um solo fértil para a germinação de mundos, o que teve a mais bela de suas confirmações no modo como reverberou no corpo de Gabriela quando o livro caiu em suas mãos, a conduzindo a dar início a uma resistência micro e macropolítica no campo da prostituição. Félix, sei que este tipo de devir de tuas ideias é o que mais te alegrava. Por isso me estendi tanto.

Volto aos movimentos que vêm se intensificando de uns tempos para cá em diferentes terrenos, para te dar mais um exemplo, e será o último. É o campo dos povos que vivem neste continente desde muito antes da colonização que o tomou de assalto, e o batizou de “América” adjetivada de “latina”. Do mesmo modo que batizou estes povos como se fossem um só e mesmo “povo” só, os colocando todos no mesmo saco sob o nome genérico de “índios” ou “indígenas”. Para que você tenha uma ideia, só no território que recebeu o nome de “Brasil” por estes sequestradores europeus, havia na época três milhões de habitantes, distribuídos entre mil povos distintos.

Estes povos vêm conseguido se impor cada vez mais na cena política, em ambas as esferas, macro e micropolítica. Nesta última, com alta potência de afirmação, seus ativistas e intelectuais (especialmente as mulheres) colocam em circulação a perspectiva a partir da qual, de diferentes maneiras, estes povos avaliam o estado de coisas. E o mais importante é que não o fazem explicando tal perspectiva, mas a partir de sua implicação com a mesma que se transmite em seu modo de falar. Eles mantém a ligação com sua condição de viventes, em contato com as reverberações em seus corpos da ecologia em curso, assumidos como bússola ética a orientar suas ações. E esta direçõo do exercício pulsional ainda persiste, apesar do contínuo massacre físico e cultural destes povos pelo poder colonial que, desde o século XVI, nunca cessou. Aliás, é bem provável que seja precisamente graças a esta persistência que eles logram resistir ao massacre até hoje.

A difusão pública desta perspectiva em seu exercício ativo entre nós, brancos modernos ocidentais, também nos ajuda a reconhecer a presença do racismo a nos conduzir na relação com o outro. Isso nos faz ver que a racialização não se projeta apenas na diferença de cor de pele, mas igualmente na diferença cultural, cujos devires foram denegados sob a designação genérica de “etnia” que, da maneira como este termo é usado pela tradição colonial, tem por efeito projetar sobre estes povos uma suposta essência cultural própria à noção de etnicidade, desconsiderando o contínuo processo de transfiguração dos modos de existência de cada grupo humano. Isso contribui para apagar suas presenças reais de nosso imaginário, neutralizando assim seu poder de contágio que nos levaria a nos transfigurar. O que se interrompe nesta dinâmica é o “devir-índio” de nossa cultura.

Do mesmo modo, a racialização projeta-se sobre a especificidade biológica das mulheres, cujos devires foram igualmente denegados sob o nome universal e homogeneizador de “gênero mulher”. E também sobre as dissidências da heteronormatividade/cisgeneridade e, por fim, sobre a diferença de condição socioeconômica que se designou pela categoria genérica de “classe”. Aliás, o fato de reconhecer o estatuto genérico do termo classe nos permite agregar uma dimensão micropolítica ao debate teórico consagrado à problematização deste conceito.

A reverberação dos deslocamentos micropolíticos da posição submissa a essas categorias genéricas, deslocamentos que esses movimentos operam de diferentes maneiras, em diferentes domínios da vida social, tem levado muitos de nós, brancos, a enfrentar o estado de coisas bem além do que havia sido possível até hoje, pela limitação de nosso horizonte à esfera macropolítica. Em diferentes graus de intensidade, embarcamos em devires mulher, negro e índio (estes conceitos que você e Gilles nos legaram), que desnaturalizam estes termos e revertem sua conotação pejorativa, que no caso de “negro”, como no de “índio” marcou sua própria invenção pelo regime colonial.

Eu diria que tais devires resultam de uma escolha ética que consiste em se deixar afetar pela presença do outro. São devires minoritários e singulares que têm a potência de contagiar a ecologia social e mental, à contracorrente do confinamento nos modelos majoritários homogeinizadores que nela se impõem soberanos. Neste processo, o poder sobrecodificador destas categorias genéricas tende a se desvanecer e, com ele, nossa blindagem ao outro. É isso o que importa, ainda que não paremos de voltar atrás, interrompendo estes devires, seduzidos pelo feitiço que estes modelos genéricos lançam sobre nós e que encontram eco em sua presença talhada em nossos corpos.

No Brasil, se todos estes movimentos já se faziam presentes nos últimos treze anos de tua vida, durante os quais você nos visitou sete vezes, desde então eles têm proliferado a um ponto que nunca havia sido atingido antes, nos levando à confirmação de que, de fato, há algo de irreversível no ar. Tenho certeza de que se aquela nossa viagem que deu origem ao livro acontecesse hoje, a presença destes movimentos certamente ocuparia muitas de suas páginas. Mas com esta longa carta que inseri no livro, agora eles passam a ocupar pelo menos uma parte dele, o que lhes dá a oportunidade de dialogarem com os movimentos do início da década de 1980 que o livro testemunha.

Posso imaginar como você estaria nisso tudo, do alto dos 91 anos que teria agora, se você não tivesse nos deixado tão precocemente. Era impressionante a garra de teu envolvimento com as irrupções de resistência micropolítica, com raro talento e perspicácia não só para detectar os embriões de mundos latentes que as impulsionavam, mas também, quase que instantaneamente, para agir no sentido de ajudar a limpar a área de resquícios de sintomas do regime de inconsciente dominante, contribuindo para que se criassem condições mais propícias para a germinação de tais embriões. E era com esta mesma garra, generosidade e talento clínico-político que você agia em tuas relações, das mais íntimas às mais distantes.

O que melhor traz a pulsação de tua presença é uma imagem fabulada por Gilles para descrever teus movimentos na coreografia da dança que se criava lindamente entre vocês. Ele disse numa entrevista que “você tinha verdadeiros raios, enquanto ele era uma espécie de para-raios que penetrava na terra, para que o raio renascesse de outra maneira; mas você o retomava, e assim vocês avançavamxxix na criação de conceitos.

Gosto muito desta imagem. Você de fato sempre teve uma escuta afiadíssima às tormentas e uma conexão direta com os afetos que as desencadeavam; tua leitura destes mundos embrionários era rápida como o raio. Um raio que irrompia permitindo detectar direções nas quais o desejo encontraria possibilidades de agenciamentos coletivos para a criação de um território-ninho, onde os gérmens de futuro que se anunciavam nestes afetos ganhariam corpo, permitindo o fim daquela tormenta até que outras eclodissem.

Com uma capacidade excepcional, era assim que você concebia e praticava a clínica e também o ativismo, indissociáveis em tua vida desde muito jovem. Você sabia da potência micropolítica da clínica para nos fazer entalhar no corpo individual e coletivo novos circuitos para os movimentos do desejo, de modo a escapar de certos circuitos já talhados que mantém o desejo cativo e a vida sob asfixia. Ninguém como você viu tão claramente que o sistema capitalista, como qualquer outro sistema econômico, social e político, implica necessariamente um determinado regime de inconsciente a partir do qual ele toma corpo, pois é tal regime que comanda a política dominante de produção da subjetividade e do desejo e das formas de sociedade que dela decorrem. É essa produção que dá a um sistema sua consistência existencial, sem a qual não se sustentaria.

E ninguém como você foi capaz de captar com tanta clareza o regime de inconsciente que você chamou de “capitalístico”, cuja complexidade você logrou articular de modo tão preciso, em teus solos e em teus duos com Gilles. Te conto aqui um pouco de como tenho tratado a fábrica de mundos sob a gestão deste regime de inconsciente. Vou me ater especialmente a duas engrenagens de seu maquinário, aliás indissociáveis, que me parecem desempenhar um papel central para o funcionamento de sua produção.

A primeira consiste na tal obstrução do acesso da subjetividade aos afetos resultantes dos efeitos da complexa alteridade de que se compõe o ecossistema, o que venho repetindo obstinadamente nesta carta. Com esta obstrução, o outro deixa de ser uma presença viva em nossos corpos, reduzindo-se a uma tela em branco sobre a qual projetam-se representações. Vedar este acesso tem o sentido de impedir a criação de enunciados que produzam um corpo sensível para aquilo que nos acontece no real e que pede existencialização. O que tal engrenagem busca evitar é a transfiguração da realidade, que tende a acontecer quando o resultado deste processo de criação toma consistência existencial e autonomia, inserindo-se em sua cartografia. O tal bloqueio lança a subjetividade num buraco negro, toda vez que se vê desestabilizada nas formas do presente (como o buraco negro abissal em que estamos lançados na atualidade, em decorrência da catástrofe política e virótica que tomou conta do planeta).

A segunda engrenagem, que vocês trabalharam magistralmente em sua obra, consiste na sobrecodificação homogeneizadora, tendo como operadores as tais figuras universais (raça, etnicidade, gênero, heteronormatividade/cisgeneridade, Édipo) que se impõem sobre as subjetividades e dirigem o movimento pulsional do desejo. Privados do elo com os afetos, os sujeitos passam a reduzir sua expressão a projeções de representações pré-determinadas que extraem daquelas figuras genéricas com as quais se identificam, o que resulta na reprodução das formações deste regime de inconsciente no campo social.

Estas duas engrenagens e a articulação entre elas são a condição para que o sistema colonial-racializante-capitalístico se imponha ao desejo, o conduzindo a agir em direção à cafetinagem da pulsão, cuja potência de produção de formas (sua essência) é o combustível do maquinário de sua fábrica inconsciente, para produzir cenários socioculturais a serviço da acumulação de capital, meta soberana deste sistema. O abuso da vida, não só humana, mas de todos os componentes da biosfera é, pois, sua violência intrínseca na esfera micropolítica. As engrenagens da máquina deste regime de inconsciente e seus operadores de sobrecodificação, produtores deste abuso, sustentam a violência deste sistema na esfera macropolítica, naturalizando a iniquidade que lhe é intrínseca.

Tendo em mente esta concepção do inconsciente como fábrica de mundos e que do regime vigente na gestão desta fábrica dependem suas formações no campo social, ninguém como você reconheceu a incontornável necessidade de resistir nesta esfera, micropolítica, resistência que você chamou de “revolução molecular”. Você sabia, como ninguém, que reduzir o combate ao âmbito macropolítico leva necessariamente à reprodução do status quo. Eu agregaria que, quando isso acontece, de nada adianta ficar choramingando pelos cantos à procura de culpados, pois interpretá-lo desta perspectiva é colocar um falso problema que nos desvia do foco e produz ideias inadequadas que nos levam a respostas igualmente inadequadas no enfrentamento do sinistro.

Com esses aportes, você nos ofereceu a possibilidade de extrair da psicanálise sua força clandestina, a potência micropolítica que, embora intrínseca à sua fundação, é difícil de aceder pelo fato de que alguns de seus conceitos tenham sido gerados a partir da própria perspectiva do regime de inconsciente que a psicanálise visava decifrar e “tratar”. Com raras exceções, esta perspectiva parece ter se imposto ao longo da história da psicanálise, o que contribuiu para que esta força micropolítica jamais tenha sido nomeada, permanecendo soterrada sob recalque. É evidente que há psicanalistas politizados, mas, neste caso, o mais comum não é que reconheçam a potência micropolítica própria à psicanálise, de modo a mantê-la ativa, mas que, em lugar disso, ampliem o horizonte de sua clínica, afim de não limitá-lo às classes médias e altas e, tampouco, ao consultório com ou sem divã, levando suas práticas a outros cenários. É claro que tais iniciativas são mais do que bem-vindas, o problema é que se restringem a somar à sua prática psicanalítica um ativismo macropolítico (quando não apenas uma consciência das urgências a serem enfrentadas nesta esfera).

E você insistia, igualmente, na potência de ações da perspectiva micropolítica para uma militância de esquerda, surda ao regime de inconsciente que está na origem das formações dominantes no campo social, as quais este ativismo tinha como alvo em seu combate. Você sabia que esta surdez da esquerda a faz ignorar que resistir na esfera do inconsciente é também um incontornável alvo da luta, se não quisermos que tudo sempre volte para o mesmo lugar: o das tais formações sociais do regime de inconsciente vigente, mudando apenas suas roupagens. Uma transversalidade entre a clínica e a política revelava-se nesta tua dupla insistência.

No caso da psicanálise, para ativar sua força clandestina, você teve que colocá-la em análise e redesenhar seu território de A a Z e encontrou em Gilles seu melhor parceiro para esta difícil tarefa que você já vinha desempenhando, teórica e praticamente, desde duas décadas antes de teu encontro com ele, nos deixando várias pistas para levá-la adiante. Você não se cansava em insistir na potência micropolítica do trabalho com o inconsciente para os ouvidos tapados de uma psicanálise que havia se convertido num dispositivo de colonização do inconsciente, ao invés de operar em prol de sua descolonização, afastando-se assim da tarefa que marcou sua fundação.

Visando tornar mais eficaz seu empenho, você e Gilles adotaram como estratégia cunhar o termo “esquizoanálise” em substituição a psicanálise, para nomear este dispositivo clínico-político, indissociavelmente conceitual e pragmático, portador de potência micropolítica. Aliás, não era raro vocês dois proporem neologismos. Para vocês, a escolha das palavras sempre foi guiada pela necessidade de dar corpo aos afetos, sem o que elas se tornam estéreis. A consequência desta esterilidade é que, ao circularem, estas palavras não cooperam para a germinação dos embriões de futuro de que tais afetos são portadores, ao contrário, elas podem inclusive contribuir para interrompê-la na ecologia social e mental por seu efeito de contágio. Isso levava vocês a arrastar o sentido das palavras em uso para outro lugar, afim de ativar os afetos nelas recalcados e é quando isso não era possível que vocês criavam neologismos. E se esses neologismos se tornavam carcaças-fetiche neutralizadas em sua pulsação ou alvos de distorção de sentido, vocês os abandonavam com a mesma liberdade com que os haviam criado.

A lembrança da relação de vocês com as palavras me faz pensar em tua escrita, o que me traz de volta a imagem do raio. Tua escrita era o próprio raio enunciando ao mesmo tempo a tormenta e os afetos dos mundos por vir que a tinham deflagrado. Por ser assim, tuas palavras são selvagens, difíceis de decifrar, a não ser que o leitor abandone a projeção de suas referências filosóficas ou psicanalíticas sobre aquilo que lê, na tentativa de compreender seu sentido e que, em vez disso, se deixe afetar pelo poder de deslocamento micropolítico de que tais palavras são portadoras, para lê-las a partir de suas reverberações em seu próprio corpo. Tampouco é possível decifrar tuas palavras, se o leitor se limite a fetichizá-las; aliás, você se fechava completamente, enrubescido de irritação, a cada vez que se deparava com este tipo de relação com teus conceitos em alguma conversa. O oposto do que te acontecia quando se deparava com destinos singulares de teus conceitos em alguém como Gabriela, a prostituta de que te falei, que você infelizmente não conheceu. Ou com alguém como Cláudio Ulpiano, aquele filósofo do Rio de Janeiro, de formação autodidata, que você tanto apreciava e que teve um papel central na proliferação do pensamento de vocês no Brasil. Você se lembra daquela quantidade impressionante de grupos de estudos que se reuniam em torno dele, muitas vezes noite adentro, naquela época? xxx.

E quando Gilles, como um para-raios, captava as intensidades dos raios que você emitia nestas palavras e penetrava na terra com os embriões de futuro nelas contidos, para criar vias para a passagem de sua excessiva carga elétrica, ele dava as condições e o tempo necessários para sua germinação em novas palavras, já mais decantadas e serenas, como ele próprio as descrevia. O lugar onde estas palavras renasciam era o da escrita em ambiente filosófico, a qual também se transformava neste processo. E daí ele os devolvia a você que, por sua vez, logo lhe lançava outros raios com seus clarões deixando vislumbrar o acesso a outras dimensões dos afetos em jogo, e assim por diante. Gilles necessitava deste raio-Félix e você necessitava de seu para-raios.

Um pacto ético e uma irreverente sagacidade para criar conceitos guiados por este pacto é o que os unia e tornava tão fecunda esta parceria, desde o instante em que vocês se encontraram no pós-68 até tua morte. Um pacto que pulsa pelas linhas de todos seus escritos conjuntos, nos arrastando para outro lugar, assim como arrasta para outro lugar a filosofia e, também, a clínica, a política e muito mais. E se isso acontece, é porque o que estes textos têm o poder de arrastar para outro lugar, é a própria perspectiva que orienta a gestão do regime de inconsciente responsável pela produção não só nestes âmbitos, mas em todos os demais campo da vida social, pelo fato de dominar o modo de produção da subjetividade de todos seus agentes, o que obviamente inclui a nós também, leitores de sua obra.

Nesta dança feiticeira entre o raio e o para-raios, coreografava-se o universo de pensamento que vocês não paravam de nos oferecer, nos convidando a desbloquear o acesso aos afetos do presente em nossa própria subjetividade. Um desbloqueio que precisava desta força já que, como não me canso de repetir, tal acesso se encontra interditado sob o regime de inconsciente dominante, que nos mantém confinados no cativeiro da neurose, sob comando dos operadores de sobrecodificação, estes sequestradores do desejo de quem depende a cafetinagem da pulsão.

A leitura do que vocês escreviam nos encorajava a retomar em mãos o fio pulsional que nos foi sequestrado e a desenvolver um saber dos afetos resultantes de suas vibrações (a ecosofia), para libertar o fio de seu cativeiro, entalhando novos circuitos para os movimentos do desejo em nossas ideias e ações.. E saiba que isso não parou depois que vocês se foram, ao contrário só se fortaleceu. A cada nova intempérie (e hoje mais do que nunca, por estarmos sob fortes intempéries que não param de eclodir), encontramos novas ressonâncias nestes escritos em nosso esforço para nos colocarmos à altura do que nos acontece. E volto a repetir pela enésima vez que se você estivesse conosco agora, teu espírito estaria em alta voltagem, fazendo irromper várias tempestades de raios.

Alguns filósofos insistem em cancelar tua presença incontornável na obra conjunta com Gilles, cancelamento que começou desde a publicação de O Anti-Édipo e que nunca parou até tua morte (e ainda hoje persiste, você acredita?) Mas é também com a mesma insistência que teu pensamento vem sendo cada vez mais utilizado pelos agentes de toda espécie de movimentos micropolíticos, tanto em sua produção teórica como em seu ativismo na vida social. A obstinação destes filósofos vem de uma impossibilidade de lidar com os efeitos desestabilizadores de tua presença na obra. O raio que irrompe pela tensão entre as cargas de sinais díspares de um mundo que já não é, e que insiste em permanecer, e de outro que está por vir, e que pressiona para existir, produzindo uma descarga por meio de palavras que enunciam a tensão e anunciam o futuro.

Por estar sob o poder do regime de inconsciente dominante, separado dos afetos, este tipo de filósofo tende a ser condenado a projetar conceitos já existentes sobre aquilo que lhe acontece (incluindo o que lhe acontece em suas leituras). Sendo o objetivo desta projeção apaziguar o mal-estar que os afetos lhe provocam os recalcando, o acontecimento não se realiza. No entanto, essa estratégia se revela impossível com teus conceitos-raios. Não dispondo de palavras que se prestem a ser projetadas sobre eles e, muito menos, sobre seus efeitos em seu corpo, seu mal-estar se transforma em angústia. Para acalmá-la, ele passa a atacar teus conceitos, afim de cancelar a descarga elétrica do raio de que são portadores e evitar suas propagações, o que torna também inútil a função do para-raios. Com isso, silencia-se a música que emana desta escrita a dois e a dança que a acompanha é paralisada, o que impede o acesso aos objetos conceituais que emergem desta pulsação. Isso cria para estes filósofos as condições para fazer de Gilles mais um monumento da história da filosofia ocidental, recuperado assim o conforto de seu lar antropo-falo-ego-logocêntrico, o cativeiro de sua neurose.

Neste processo de cancelamento, minimiza-se a voltagem dos raios que pulsam na obra, a escrita se esvazia dos afetos que lhe deram origem e, mais grave ainda, insensibiliza-se a perspectiva que a orienta, anulando seu poder de contágio. Com esta atitude reativa, a obra se torna uma retórica estéril, destituída de sua força micropolítica propulsora de acontecimento em sua leitura; e é nestas condições que ela se presta a ser petrificada e convertida em monumento.

Mas nem vale a pena perder tempo com isso; as forças reativas nunca foram capazes de sufocar a potência de contágio de uma obra e é inevitável que o destino das mesmas seja o de desmanchar-se nas espumas da história, destino de tudo aquilo que na existência humana se produz contra a vida e não a seu favor. Em contrapartida, há adversários de qualidade cujos argumentos vale a pena levar em consideração.

Você viveu intensamente os 62 anos durante os quais esteve fisicamente presente entre nós e, pelo jeito, você se cansou ao ter que lidar com esta volta triunfal do sinistro e com a apatia que se instalou na sociedade naquele momento, como tende a acontecer no próprio momento em que um trauma se produz, seja na vida individual ou coletiva. Pena que você não teve como esperar mais três anos, pois, como te conto nesta carta, a terra voltou a tremer na segunda metade daquela década e não parou mais desde então. Fico só imaginando os raios que em você irromperiam e o quanto seus clarões nos permitiriam vislumbrar o latente nestes tremores.

Esta carta está se estendendo demais, eu sei, mas eu gostaria de compartilhar com você uma última coisa. Trata-se de um problema que tem se imposto a meu espírito, pela urgência que sinto de considerá-lo mais precisamente no traçado da cartografia do regime de inconsciente próprio ao capitalismo. O problema diz respeito ao lugar que nela ocupa o racismo, o que me leva a voltar a esta questão. A cartografia deste regime de inconsciente ganha uma força maior ainda enquanto arma de resistência micropolítica se a ela articulamos a noção de raça. É verdade que você desde muito cedo já fazia essa articulação. Aliás, isso aparece em nosso livro várias vezes, por exemplo quando você se dava conta de que, no Brasil, “a questão do racismo está muito longe de se resolver ao nível inconsciente, mesmo na cabeça daqueles que têm com relação a isso posições políticas perfeitamente corretas”; ou quando você dizia que “é condição para as sociedades capitalísticas se manterem que elas sejam calcadas em uma certa axiomática de segregação subjetiva. Se os negros não existissem, seria preciso inventá-los de alguma maneira. No Japão não há negros, mas eles inventaram os negros do Japão: há naquele país minorias étnicas totalmente marginalizadas, como os coreanos, que são como os norteafricanos na França.” xxxi.

Ainda assim, me parece essencial insistir em que a noção de raça é um dos principais operadores da sobrecodificação, as axiomáticas de segregação subjetiva, como você o diz. É a tal engrenagem da máquina deste regime de inconsciente que cumpre a função de reterritorializar a subjetividade, sequestrando suas linhas de fuga desterritorializantes. É mais do que sabido que tal noção foi inventada no século XVI, no contexto da cultura moderna ocidental e sua empresa colonial, indissociável do surgimento do regime capitalista, tendo recebido no século XIX um fraudulento certificado de cientificidade, baseado nos métodos estapafúrdios da ciência positivista da época que “demonstraram” que a pretensa hierarquia entre supostos graus de evolução do humano teria substrato biológico, o que deu a esta absurda noção ainda mais credibilidade.

O que me parece importante extrair dessa noção do ponto de vista clínico-político, é que ao naturalizar a desigualdade intrínseca às formações deste regime de inconsciente no campo social, ela é a isca que nos captura, nos mantendo atados como peixes às redes da sobrecodificação. E assim permanecemos, imersos numa constante ansiedade narcísica pela busca compulsiva de reconhecimento em patamares supostamente superiores da suposta hierarquia entre os diferentes grupos humanos, que com esta noção se estabeleceu.

No topo desta hierarquia está o modo de subjetivação antropo-falo-ego-logocêntrico do homem branco europeu de classe alta, que se estende hoje às elites transnacionais econômicas e políticas. É em função do grau de similitude com este modo, estabelecido como modelo padrão, que se mede o valor da existência de todos os demais humanos, tendendo a zero o valor daqueles que se encontram nos patamares mais baixos desta perversa categorização. Esta hierarquia é o que orienta a relação que nós, brancos, estabelecemos com o outro, nos fazendo projetar o racismo em todos os corpos cuja presença destoa daquele padrão, desconhecendo que nós mesmos estamos sob o domínio da noção de raça. É esta hierarquia delirante que nos faz agir pautados pela ilusão de sermos de raça superior, cuja consequência é naturalizar nossos privilégios materiais e a precariedade das demais existências de que tais privilégios dependem. E o mais grave é que sequer percebemos que o que consideramos um modo de vida privilegiado (do ponto de vista macropolítico, que se pauta sobretudo pelo acesso aos bens de consumo) implica uma vida das mais miseráveis que lhe é intrínseca (do ponto de vista micropolítico, que se pauta pela própria vida para perseverar em sua potência).

Isso me faz pensar em uma ideia de um dos pensadores do racismo, Charles W. Mills, filósofo jamaicano que você não conheceu. Ele cunhou o conceito de “contrato racial”, que estaria no coração do “contrato social”, um dos pilares da filosofia política ocidental moderna xxxii. Ele mostra como a própria concepção do contrato social é marcada pelo racismo. Seguindo este caminho, eu acrescentaria que o contrato racial é produzido pelo tipo de gestão da máquina do regime de inconsciente dominante, responsável pela produção das formações do sistema colonial-capitalístico no campo social. E é esta gestão que determina sua condição de elemento estruturador do contrato social próprio a este sistema. Sendo assim, não basta identificar e combater a iniquidade que resulta deste contrato na esfera macropolítica; é preciso identificar sua presença como operador desta máquina de produção de mundo, sob a gestão deste regime de inconsciente. Se este tipo de gestão não é combatido e substituído, tal contrato não é rompido. E é bom lembrar que o contrato racial não incide apenas na cor de pele, mas em todos os signos que funcionam como marcadores identitários da hierarquia fictícia que distribui os lugares nas relações de poder neste contexto, produzindo a complexa trama da cena macropolítica na qual nos encontramos. O mesmo vale para o conceito de “racismo estrutural”, criado no contexto das lutas antirracistas contemporâneas, o qual tende igualmente a ser abordado apenas do ponto de vista macropolítico.

Atacar esta noção é, pois, atacar um dos operadores essenciais do regime de inconsciente que comanda a produção da subjetividade no capitalismo, condenada a repetir infinitamente sua dinâmica doentia como uma melodia inscrita nos sulcos de um disco no caso, nosso disco cerebral e suas melodias psíquicas e sociais. Se consideramos que o racismo está talhado em nosso cérebro na cultura colonial-capitalista, sob a gestão deste regime de inconsciente que conduz o desejo por seus circuitos, a luta contra o racismo deve incluir em seu alvo a esfera micropolítica. É essa insurreição que vem eclodindo nos setores da sociedade compostos por corpos racializados que te mencionei nesta carta.

Como já salientei, para nós, brancos afetados pelas ressonâncias de tais levantes em nossos corpos, estas nos colocam diante da tarefa de desmontar o racismo em nós mesmos. O que eu acrescentaria agora é que para isso não basta se declarar não racista e, inclusive, antirracista, mesmo que se tenha práticas nesta direção. É indispensável desviarmos nossos movimentos de desejo dos sulcos do racismo e suas melodias que se repetem infinitamente como num disco rachado. Isso se faz talhando outros sulcos em nosso corpo, dos quais emanem outras melodias, participando assim da construção coletiva de um modo de existência que não seja marcado por esta hierarquia colonial-racializante doentia que, com as palavras de ordem que emite silenciosamente, não pára de infectar o corpo social. Em suma, desmontar o racismo em nossa política de subjetivação é inseparável do processo de criação de outras políticas, sem o que tal desmontagem não se sustenta e o racismo continuará orientando nossos passos.

Se você e Gilles estivessem agora conosco, provavelmente escreveriam O Anti-Raça, que complementaria o corajoso e bem-sucedido trabalho de desmontagem, que vocês fizeram no Anti-Édipo, cujo foco é outro operador fundamental da sobrecodificação própria a este regime de inconsciente, naturalizado pela psicanálise como se fosse nossa essência: a família nuclear patriarcal burguesa e seus personagens edipianos. Um operador tão central quanto a noção de raça, assim como o são as de gênero, de etnicidade e de heteronormatividade/cisgeneridade, para as formações deste regime de inconsciente na cena social. Como Édipo, tais operadores fazem funcionar sua máquina produtora não só das personagens de que se compõe esta cena, mas também da dinâmica dominante de relações de poder entre elas. Mas reconheço que querer que você, sozinho ou com Gilles, tivessem feito esse trabalho por nós é um fantasma infantil no modo-edipiano. A tarefa é nossa.

A propósito da importância desta tarefa, alguns psicanalistas dedicaram-se a ela já nos anos 1950, mas em geral não lhe deram esta centralidade em sua concepção do inconsciente, com raras exceções como é o caso de Fanon, que você tanto apreciava. Ele sabia desta urgência mais do que ninguém em sua época e dedicou-se integralmente a ela. Aliás, te conto que nos tais movimentos contra o racismo que vêm acontecendo nas últimas décadas, ele voltou à cena com força total, gerando muitos desdobramentos, sobretudo no combate clínico-político que como você, mas de outro modo, ele travou teórica e praticamente. É digno de nota que vocês tiveram em comum Sartre, Lacan e Marx, como referências centrais em sua juventudexxxiii. Mais digno de nota ainda é que, bem no início de suas respectivas atuações nos campos da psiquiatria e da militância, ambos foram marcados pelo trabalho de Tosquellesxxxiv. Isso certamente os conduziu, cada um à sua maneira, a entender que a resistência a um regime, não pode reduzir-se a esfera macropolítica, pois depende, incontornàvelmente, de um trabalho com o inconsciente. E esse entendimento foi central em suas respectivas existências, talvez o principal condutor de ambas trajetórias. Se Fanon não tivesse morrido tão cedo (que lástima), certamente haveria um diálogo fecundo entre vocês, se é que este diálogo não chegou de fato a existir.

Bem, eu teria muito mais coisas para te dizer, mas vou parar por aqui, senão esta carta não terá fim. Espero que não te incomode que ela será pública. Aliás, é por isso que escrevi notas de rodapé, algumas bem extensas, uma presença invasiva do protocolo acadêmico no espaço sem protocolos de uma carta. É que eu tinha que passar para os leitores informações sobre fatos, livros, pessoas etc., que menciono na carta e que alguns deles talvez desconheçam. Mesmo assim é a você que endereço as notas, como um espaço à parte, no qual teço alguns comentários paralelos e, sobretudo, conecto teus mundos com os mundos de teus leitores de hoje.

Curiosamente, é nestas culturas tão distintas, como o são o Japão e o Brasil, ambas, por sua vez, tão distintas da França, que você se sentia mais a gosto. Aliás, graças à publicação japonesa, estamos enfim conectando a memória de tua presença nestes dois países, que se deram simultaneamente no início dos anos 1980, e através disso, conectando também (espero) os devires desta presença na atualidade de ambos contextos.

A propósito de teu encontro com o Brasil, na epígrafe que você escreveu a nosso livro, você o retratou como “uma história de amor à primeira vista”, o que certamente se aplicaria também a teu encontro com o Japão. É que, nestes dois países, você identificava uma especial escuta para a alma de tuas palavras (aqueles raios de afetos que nelas pulsavam). E destes encontros surgiam outros universos de pensamento, que não eram mais os que você tinha trazido, nem os das pessoas neles envolvidas. Por isso se pode dizer sobre a recepção de tua presença no Brasil e, imagino, que também no Japão, que este amor foi e continua sendo recíproco. Não será precisamente quando acontece um encontro desta natureza que podemos chamar de amor à primeira vista? Um encontro onde o fio de uma teia é lançado, anunciando uma amizade na qual uma trama será tecida e dela surgirão novos universos, como você a definiu naquela entrevista que evoquei no início da carta.

Espero que a chegada no Japão deste livro que escrevemos há trinta e nove anos, assim como sua reaparição no Brasil, neste momento tão conturbado, possam mobilizar esta mesma qualidade de escuta. E que este novo encontro lance também um fio no qual pulsem outras tantas reverberações nas insurreições micropolíticas do presente, com as quais se teçam teias que contribuam para a tomada de consistência de mundos em germe nestes combates. Você há de concordar comigo que se não fosse para colaborar na construção coletiva dos futuros, de que serviria publicar o que se escreve?

Bem, agora tenho que parar mesmo.

Com muita saudade e gratidão,

Suely

São Paulo, maio de 2021

i Félix, para que você se lembre da entrevista à qual me refiro é aquela que você deu a George Veltsos para seu programa de televisão, realizada em abril de 1991; ela foi transmitida no final de 1992, depois de tua morte. Eu a vi no endereço eletrônico https://www.youtube.com/watch?v=tJy3BCn8NeE. Te conto que, alguns anos depois, transcrições desta entrevista foram publicadas em duas ocasiões na Chimères : Guattari, “Entretien à la télévision grecque” (Chimères 69 [2009], pp.51-63; Chimères 77 [2012], pp.11-20). Para os leitores que não sabem, a revista Chimères foi fundada por você e Gilles, em 1987. A escolha do nome (que se traduz em português por “quimeras”) se deve à ideia de que “a esquizoanálise é uma ciência das quimeras, a contrapelo da pseudocientificidade reivindicada pela psicanálise”, como você escreve no primeiro número da revista. Sim, Félix, como você acaba de se dar conta, esta carta será pública… A razão é simples: a vontade de escrevê-la me veio quando Masaaki Sugimura, teu amigo japonês, me convidou para participar de uma coletânea de textos sobre você que ele organizou e que intitulou Para Félix. Na ocasião, comecei a escrever, mas não pude terminar porque fui infectada pela Covid-19, uma doença causada por um vírus, o SARS-CoV-2, que tomou de assalto o planeta inteiro há um ano e meio, provocando uma das mais graves pandemias de que se tem conhecimento (te falarei sobre isso na carta). Quando voltei à tona, quatro meses depois, era tarde demais e daí pensei em retomar a carta à guisa do posfácio que estava previsto para esta primeira edição de nosso livro no Japão, organizada pelo próprio Masaaki; e pensei em inseri-lo igualmente em suas reedições nos outros cinco países onde foi publicado, assim como em sua 17ª edição no Brasil, que sairá este ano por uma nova editora. Coloco aqui este trecho da entrevista no original para refrescar tua memória: « L’amie est celui que se tourne vers, que se tourne vers l’autre et qui constitue l’autre. Pas forcément dans un rapport d’identification, parce que l’amitié est parallèle à un rapport agonique, mais qui, dans ce rapport singulier à l’autre déploie un certain univers. Dans la complicité amicale il y a toujours un troisième terme qui est le monde qu’on est en train de tisser, qu’on est en train de travailler. Et L’amitié socratique ce n’est pas quelque chose qui se résout dans une identification homosexuelle, dans une incorporation de l’autre ; c’est quelque chose qui est là pour tendre un filet qui dépasse complètement les rapports interpersonnels et qui donne une consistance à un certain type d’objets qui seront des objets conceptuels. ». E para os leitores de língua portuguesa que quiserem ver a transcrição completa desta entrevista, ela foi publicada no Brasil, por Anderson Santos que também a traduziu: “Félix Guattari: entrevista para a tv grega (1992)”. Revista Polis e Psique, v. 8, n. 2 (2018): http://seer.ufrgs.br/index.php/Polise….

ii Félix, esta frase de Gilles está numa carta que ele escreveu, em outubro de 1982, em resposta a uma carta de Kuniichi Uno. Você deve certamente se lembrar disso. A resposta de Gilles foi traduzida em japonês pelo Uno e publicada em Gendai Shisõ? (A revista do pensamento atual), Tóquio, dezembro de 1982, pp. 50-58. A carta ficou acessível fora do Japão, bem depois da morte de Gilles, numa coletânea com uma seleção de seus escritos, organizada por David Lapoujade, em 2003. Coloco aqui a referência desta coletânea para aqueles que queiram ler esta entrevista na íntegra: DELEUZE, Gilles. Dois regimes de loucos: textos e entrevistas (1975 – 1995). Tradução de Guilherme Ivo. São Paulo : 34, 2016. No original : Deux régimes de fous. Textes et entretiens (1975-1995). Paris: Minuit (Collection Paradoxe), 2003, p.220.

iii Félix, me refiro obviamente a teu livro As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990 (no original : Les trois écologies. Paris: Galillé, 1989). Te conto que, por ser mais atual do que nunca, esse livro voltou a circular intensamente nos últimos tempos.

iv Félix, a modalidade de interrupção dos processos de experimentação social via cafetinagem de sua potência pulsional de produção de formas só se instaurou na América latina nos anos 1990, duas décadas depois da Europa, com o estabelecimento da nova dobra do sistema capitalista no continente, o que trouxe uma mudança na paisagem local, que você não chegou a conhecer. É quando foram postas em prática ideias, entre outras, de “economia criativa”, do alto grau de rentabilidade que se pode extrair da criatividade etc., gerando também em nosso continente uma nova classe de trabalhadores que teu amigo Bifo, chamou de “cognitariado”, naqueles mesmos anos 1990, quando se começava a decifrar conceitualmente a nova dobra do regime que se instalara na Europa em meados dos anos 1970. Neste contexto, como sabido, os processos de criação tendem a ser separados dos afetos que os desencadeiam, os esvaziando assim da potência transfiguradora de sua produção que tem como objetivo devolver à vida seu ritmo, para serem reduzidos à simples criatividade, limitando-se a produzir oportunidades de acumulação de capital.

v Félix, coloco aqui a referência de teu livro para os leitores desta carta: Os anos de inverno: 1980-1985. São Paulo: n-1 edições, no prelo. Edição original, Les années d’hiver: 1980-1985. Paris: Barrault, 1986. Reeditado em 2009 pela Les Prairies Ordinaires.

vi Félix, o conceito de « globalitário » foi introduzido no Brasil pelo geógrafo Milton Santos para tornar explícita a natureza totalitária do fenômeno da « globalização », termo que designa a mundialização do capitalismo, em sua versão contemporânea.

vii Félix, você deve se lembrar da viagem que fizemos, em 1982, com Laymert (Garcia dos Santos) e outros amigos, a Angra dos Reis, uma cidade praiana entre o Rio e São Paulo, durante a qual Laymert e eu ficamos full time editando este livreto.

viii Félix, apenas para que você saiba, incluí esta edição de tua conversa com Lula em nosso livro para sua sétima edição brasileira revisada, publicada em 2007, e também em suas edições francesa e norte americana, as primeiras fora do Brasil, lançadas naquele ano, assim como em suas publicações posteriores em outros idiomas. Embora os leitores tenham acesso a esta conversa neste livro, passo aqui a referência do mencionado livreto, para aqueles que o desconhecem. Félix Guattari entrevista Lula, Suely Rolnik e Laymert Garcia dos Santos (eds.). São Paulo: Brasiliense, 1982 (esgotado).

ix Félix, o impeachment, como uma das etapas da nova modalidade de golpe, começou na América Latina em 2009, com a deposição de Manuel Zelaya, então Presidente de Honduras, seguido pela deposição de Fernando Lugo, então Presidente do Paraguai, em 2012. O impeachment de Dilma foi o terceiro da série, em 2016, ao qual se seguiram outras deposições de Presidentes de vários países do continente. Te conto brevemente sobre o plano que está por trás de tais impeachments, arquitetado em alguns encontros entre políticos conservadores de todo o continente. Os primeiros foram em Assunção, em 2010, e em Brasília, em 2011, pouco meses antes do golpe no Paraguai. Mas o plano só veio a se consolidar numa terceira reunião, realizada em novembro de 2012, cinco meses depois daquele golpe, na cidade norte-americana de Atlanta (conhecida por suas operações de mídia e tecnologia da informação, que seriam necessárias ao plano, além de ter o maior aeroporto do mundo, o que facilitava a viagem dos participantes, vindos de vários países). Nesta reunião estiveram presentes uma dezena de ex-presidentes de direita e centro-direita das Américas Central e do Sul (do Brasil, o ex-presidente Sarney manifestou seu apoio, embora não tenha participado presencialmente, além de que alguns dos ex-presidentes presentes no encontro haviam estado com Temer em 2011, então vice de Dilma Rousseff). Participaram também líderes de diversos setores da política, da economia, da mídia e do poder judiciário daquelas regiões e dos Estados Unidos. Ao final da reunião foi lançada a “Declaração de Atlanta”, e se constituiu a partir daí a 1a Cúpula da Missão Presidencial Latino-americana (MPL).

x Félix, descrevo e analiso mais em detalhe o que chamei de “nova modalidade de golpe” (e, mais amplamente, de poder) num livro que lancei em 2018, Esferas da Insurreição. Notas para uma vida não cafetinada (São Paulo, N-1, 2018), cujo subtítulo em sua publicação em outras línguas foi substituído por “Notas para descolonizar o inconsciente”, por causa da dificuldade de traduzir “cafetinada” no sentido que dei a este termo em português.

xi Félix, “golpe suave” foi o nome dado a esta estratégia na tal reunião de Atlanta. O objetivo do plano traçado naquela ocasião, que levou à fundação da MPL, fica evidente em dois dos enunciados proferidos por seus participantes: “Como não podemos ganhar desses comunistas pela via eleitoral, interromperemos seus mandatos com uma máscara de legalidade”. E o segundo é justamente “golpe suave” como foram chamadas tais interrupções. O uso do plural e sua qualificação já indicam que esta modalidade de golpe consiste numa sequência de operações que se dão ardilosamente a conta gotas e cuja violência não é explícita, pois se camufla sob uma máscara de legalidade, construída sobre bases falsas.

xii Félix, Big Brother é um reality show exibido na televisão; uma espécie de versão contemporânea do livro 1984, que George Orwell publicou no pós-guerra, em 1949, movido, sobretudo, por sua perplexidade diante dos horrores do Stalinismo no final dos anos 1930. Vale a pena te contar um pouco deste reality show, porque é um bom exemplo do show de horrores da realidade que estamos vivendo e que, em outro contexto e de outra maneira, nos lembra aqueles capítulos aterrorizadores da história do século XX, dos totalitarismos de diferentes espécies. O que é mais significativo deste reality show é que ele põe em cena o Big Brother Orwelliano, não com a mesma intensão crítica do autor, mas ao contrário plenamente identificado com o enredo para o gozo dos espectadores. Um grupo de pessoas é confinado numa casa, por um período de três meses, sem qualquer contato com o mundo externo, seja ele presencial ou virtual. O único contato é com o apresentador do programa, cujas aparições limitam-se a um telão instalada na casa, no qual é transmitida sua imagem. Este desempenha o papel repaginado do tal Grande Irmão Orwelliano, que, como ele, assume a função de guia psicológico dos participantes, enaltecido pelo grupo a cada vez que aparece. O cotidiano do grupo é vigiado por câmeras 24 horas por dia, que o registra para o deleite voyeur dos telespectadores que acompanham diariamente estas imagens e que, no último dia, escolherão o vencedor. Este, além de ganhar um prêmio em dinheiro, receberá o estatuto de “subcelebridade” nacional, tal como eles são chamados pejorativamente pelo público. Ao longo do programa, a cada semana os participantes devem indicar dois ou três deles que serão submetidos à votação popular para escolher aquele que será eliminado da casa (é o que eles chamam de “paredão”, alusão a “paredón”, nome dado em Cuba para a operação na qual os inimigos do regime eram alinhados contra um muro para serem fuzilados). O grau de humilhação pública a que estes personagens são expostos, tende a lançá-los numa espécie de morte subjetiva, o que inclusive já levou alguns deles ao suicídio. Surgido na Holanda em 1999, a fórmula Big Brother virou rapidamente um fenômeno mundial. No Brasil, desde seu início em 2002, ele já teve 21 edições, com recorde permanente de audiência entre os mais de 60 países nos quais está em curso este fenômeno. O sucesso repete-se na internet, onde o site do Big Brother Brasil bateu recordes ainda mais significativos a tal ponto que a rede Globo, a maior emissora de tv do país, detentora do contrato com a empresa holandesa proprietária dos direitos do programa, o renovou até 2024.

xiii Félix, “necropolítica” é um conceito criado por Achile Mbmembe, intelectual camaronês cuja obra tem sido uma das armas teóricas mais potentes para enfrentar a paisagem sinistra do presente e as forças reativas da história colonial e escravocrata que ainda determinam seu desenho.

xiv Félix, Lula permaneceu na prisão 580 dias. Ele foi solto em 2021, com a anulação do processo que o condenou. A fraude jurídica escandalosa que levou à sua condenação foi revelada pela atuação de dois hackers, que conseguiram acessar as mensagens escritas entre o juiz (Sergio Moro) e os procuradores responsáveis pelo caso, registradas em seus celulares. Uma cópia das mensagens foi entregue ao jornal eletrônico The Intercept que, por sua vez, estabeleceu uma parceria com a grande mídia televisiva e impressa, logrando assim torná-las públicas. Para que você saiba, te conto que um dos fundadores do The Intercept é Glenn Greenwald, jornalista norte-americano especialista em direito constitucional que, em 2013, em parceria com outros jornalistas levaram a público a existência de programas secretos de vigilância global dos Estados Unidos, efetuados pela Agência de Segurança Nacional (NSA), a partir de informações secretas reveladas por Edward Snowden (analista de sistemas, ex-administrador de sistemas da CIA e ex-funcionário da NSA).

xv Félix, esta ideia é inspirada na teoria de alguns autores contemporâneos que propõem o termo “Tradicionalismo”, para designar este novo tipo de conservadorismo. Esta diferenciação em relação aos conservadorismos do século XX me parece pertinente, mas não concordo com o que tais autores propõem como solução para combater este novo tipo de conservadorismo: a retomada dos valores do Iluminismo. Se a proposta do Tradicionalismo consiste em voltar a uma época pré-iluminista (contexto que esses neo-conservadores descrevem de maneira totalmente imaginária, marcada pelas imagens que a indústria cinematográfica hollywoodiana produziu do mesmo), propor uma defesa a-crítica do Iluminismo não me parece uma resposta adequada à sua demonização. A resposta à esta nova versão do retorno do recalcado é o que está em vias de construção há muito tempo (e que ultimamente tem se expandido e se intensificado cada vez mais), tanto no ativismo como no trabalho do pensamento. Tal construção não se faz nem contra o Iluminismo nem a favor dele, mas operando um desvio de sua lógica, criando outros modos de existência por meio de um diálogo entre diferentes contextos culturais num esforço comum nesta direção.

xvi Félix, você acredita que o governo está em seu quarto Ministro da Saúde, desde que começou a pandemia? O primeiro foi demitido por Bolsonaro e o segundo demitiu-se por conta própria menos de um mês após assumir a pasta (a razão da saída de ambos, médicos, foi sua recusa a se submeter às ordens psicopatas de seu chefe, o presidente). O terceiro, um general tão tosco quanto Bolsonaro e que não entende nada de medicina nem de saúde pública, foi demitido pelo Presidente para que pesasse sobre seus ombros a culpa exclusiva pela calamitosa conduta do Estado face à pandemia, negando assim sua própria responsabilidade pela situação, enquanto chefe de Estado. Esta absoluta irresponsabilidade o caracteriza desde o início da pandemia.

xvii Félix, em muitos de teus textos (especialmente em teu livro As três ecologias) e em toda tua atuação junto aos movimentos ecológicos e partidos Verde de vários países você contribuiu para introduzir nesse âmbito a perspectiva micropolítica. Tomar consciência de que somos parte do ecossistema (o que caracteriza grande parte dos agentes de tais movimentos e partidos), mesmo que se atue concretamente para colocar barreiras às ações que o destroem, não nos desloca necessariamente da submissão ao regime de inconsciente dominante. Para que tal deslocamento se dê efetivamente, é preciso integrar à experiência subjetiva aquilo que nos acontece em nossa condição de viventes, elementos ativos do ecossistema. Desta integração depende a possibilidade de levarmos em consideração os signos que nos chegam a partir desta condição, de modo que estes sejam os condutores das ações do desejo, as quais participam do processo coletivo de criação de formas que restituam ao ecossistema seu equilíbrio. E é exatamente desta condição de viventes que tal regime nos separa. Reconectar-se com essa condição (o alvo da resistência micropolítica) é igualmente o que nos faz ver que a ecologia não é apenas ambiental, mas também social e mental, o que amplia a noção de ecossistema que tende a predominar naqueles movimentos e partidos.

xviii Félix, para te lembrar do texto a que me refiro aqui e também para indicá-lo aos leitores desta carta que o desconheçam, seu título na primeira edição, aquela a que você teve acesso, era “Amor…o impossível e uma nova suavidade”. A partir da sétima edição revisada, mudei o título para “Amor, territórios de desejo e uma nova suavidade”, e voltei a mudá-lo na presente edição para “O cativeiro no amor romântico e uma nova suavidade”. [Larissa peça para Masaaki colocar este título no texto em questão; no português está na página 339] Tais mudanças foram feitas da perspectiva de processos posteriores aos anos 1980, quando o texto foi escrito, e nos permitem situá-lo retrospectivamente. Se as transfigurações do modo de existir de homens e mulheres sob a égide da palavra de ordem do gênero, assim como das relações entre ambos sob o modelo genérico do amor romântico, próprios do regime de inconsciente dominante, dava então seus primeiros passos, tais transfigurações foram tomando cada vez mais consistência nas décadas seguintes, e hoje já não há como voltar atrás.

xix Félix, este tema foi amplamente trabalho por Silvia Federici (uma filósofa italiana, feminista e marxista que vive nos Estados Unidos desde os anos 1970), especialmente em dois de seus livros que você teria gostado de ler: Caliban and the Witch: Women, the Body and Primitive Accumulation (N.Y.: Automedia, 2004) e Witches, Witch-Hunting, and Women (NY: PM Press, 2018). Publicações no Brasil: Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (São Paulo: Elefante, 2019) e Mulheres e caça às bruxas (São Paulo: Boitempo, 2018).

xx Félix, a ideia de “conduzir a pulsão a seu destino ético” e outras tantas ideias espalhadas pela carta, se originam de meu diálogo com João Perci Schiavon, psicanalista brasileiro que, há vários anos, vem reconstruindo a arquitetura da psicanálise da perspectiva de um “inconsciente pulsional” para a qual Lacan e Freud são colocados em diálogo com você e Gilles e toda a linhagem da história da filosofia ocidental que vocês convocam em sua obra. Ele hoje está conosco como professor do Núcleo de Estudos da Subjetividade no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP. Você, aliás, me ajudou a conceber este Núcleo, em sua fundação no início dos anos 1980, lembra? Entre as publicações de Schiavon, há um livro de que você gostaria especialmente e que recomendo aos leitores: Pragmatismo Pulsional. Clínica psicanalítica (São Paulo: n-1, 2019).

xxi Félix, você encontrou Lygia em Paris, na casa de um amigo onde eu estava morando naquele momento, por ocasião de uma festa que organizei só para que vocês se conhecessem. Eu quis promover este encontro porque Lygia tinha sentido reverberações fecundas para suas proposições artísticas naquilo que eu lhe contava das aulas de Gilles em Vincennes e, também, no O Anti-Édipo, que eu lhe tinha apresentado. Ela sentiu estas reverberações igualmente, em La Borde, que ela conheceu quando esteve em um dos três dias do que havíamos chamado de “Carnaval”, que resultou do projeto de três meses que você me convidou a realizar na clínica, em 1973; o fato é que ela não encontrava esta mesma sintonia em outro lugar. Então, naquela noite projetei uma série de slides destas proposições, especialmente para que você as conhecesse. Mas você não se conectou nem um pouco, lembra?

xxii Félix, dois dos curadores desta exposição, Núria Enguita Mayó e Manuel Borja-Villel (então diretor da Fundació Antoni Tapiès, museu e centro cultural de Barcelona, onde a mesma teve lugar, em 1997), estão entre aqueles que participavam ativamente do movimento crítico no interior do sistema internacional da arte e assim seguem até hoje. Também eram engajados nestas práticas de resistência crítica (e continuam sendo), os diretores dos museus parceiros que receberam a exposição em sua itinerância. Para os leitores que queiram informações sobre as duas outras exposições, são elas, a Documenta X de Kassel, em 1997, com curadoria de Catherine David, e “Global Conceptualism: Points of Origin, 1950s-1980s”, no Queens Museum, em 1999, com curadoria de Luis Camnitzer, Jane Farver and Rachel Weiss. Ambas tiveram uma pequena sala especialmente destinada a algumas proposições de Lygia.

xxiii Félix, tive a sorte de encontrar as pessoas certas para chegar a esta qualidade particular de som e de imagem. Babette Mangolte, que me foi indicada por Chantal Akerman, filmou as entrevistas na Europa e Moustapha Barrat filmou as realizadas no Brasil. E foram eles que indicaram os demais profissionais que compuseram as respectivas equipes de filmagem.

xxiv Félix, te conto que a expressão “arquivo vivo”, assim como o verbo “ativar”, foram integrados desde então ao léxico do circuito da arte. Criados pela necessidade de nomear a que vinha este dispositivo, ambos vem tendo desdobramentos singulares e fecundos, mas também outros de pura fetichização, o que é inevitável no sistema da arte e não só nele.

xxv Félix, a Cinemateca brasileira, onde se encontram os DVCAM originais das 62 entrevistas filmadas, como outras instituições culturais do país, encontra-se neste momento sob o fogo de um ataque por parte deste governo energúmeno, colocando em risco todo seu precioso acervo. E a caixa com vinte destes filmes, produzida em 2011 na França (Carta Branca/Presse Du réel) e no Brasil (Cinemateca Brasileira-MinC e SESC-SP), está há muito tempo esgotada.

xxvi Félix, esta amiga é Corinne Diserens, uma das curadoras que receberam a exposição de Lygia realizada na Fundação Tapiès. Na época, ela era diretora do Museu de arte contemporânea (MAC), de Marseille que participou da itinerância da exposição.

xxvii Félix, esta proposição recebeu o nome de Estruturação do Self que, infelizmente, fui eu quem o sugeriu à artista. É um péssimo nome, pois embora ele seja adequado conceitualmente, é destituído da pulsação poética de que tais proposições eram portadoras, da qual dependia a abertura do acesso aos afetos naquele que as experimentasse, como condição de realização da obra.

xxviii Félix, para que você fique sabendo, dali em diante Gabriela nunca deixou de ser ativa no movimento de defesa dos direitos das prostitutas, tendo sido uma de suas principais lideranças. Uma das conquistas mais significativa do movimento foi a inclusão do termo “trabalhador do sexo” na Classificação Brasileira das Ocupações (CBO), permitindo que as prostitutas passassem a ter o direito de se registrar no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) como autônomas, o que lhes garantiu o acesso ao sistema público de saúde e à aposentadoria. Detalhe, graças a Gabriela consegui encontrar uma das prostitutas, Ivanilda Santos Leme, que haviam passado pelas proposições de Lygia, e filmei uma entrevista com ela, que incluí no tal arquivo. O encontro com Gabriela me levou a incluir uma entrevista também com ela, além de ter sido o início de uma amizade entre nós que permaneceu, ainda que à distância (não morávamos na mesma cidade), até sua morte precoce, em 2013.

xxix Félix, este trecho daquela carta de Gilles a Kuniichi Uno foi uma resposta à pergunta que ele lhe havia colocado acerca de como funcionava, entre vocês, esta escrita a dois. Para que você se lembre, a frase no original é a seguinte : « Selon moi, Félix avait de véritables éclairs, et moi, j’étais une sorte de paratonnerre, j’enfouissais dans la terre, pour que ça renaisse autrement, mais Félix reprenait, etc. et ainsi nous avancions » (…) Peu à peu, un concept prenait une existence autonome ».

xxx A propósito de Ulpiano, Félix, te conto que François Dosse, um historiador francês que não sei se você conheceu, escreveu uma biografia cruzada de você e Gilles, em cujo capítulo sobre o Brasil, Ulpiano sequer é mencionado, assim como muitos brasileiros, não só intelectuais, com quem você gostava de dialogar, pois encontrava neles reverberações interessantes a seus conceitos. Embora ele fosse professor de filosofia em duas universidades, em seu lugar, são mencionados professores de filosofia prestigiados no mundo acadêmico brasileiro, que desconhecem totalmente a obra de vocês, e cujo pensamento é muito distante da perspectiva que conduzia vocês em seus escritos. Sei que isto te entristeceria bastante, mas te asseguro que não foi por falta de insistência junto ao autor para colmatar estas lacunas. Não sei se aconteceu o mesmo no capítulo consagrado à tua presença no Japão.

xxxi Félix, estas duas passagens estão em nosso livro nas páginas 60 e 61 da edição brasileira.

xxxii Félix, para que você saiba a que obra me refiro, a ideia de contrato racial encontra-se em um ensaio de Charles W. Mills que tem esta noção como título: The Racial Contract. Ithaca and London: Cornell University Press, 1997.

xxxiii Félix, muitas pessoas me perguntam qual foi tua formação universitária; eu sei que isso não tem a menor importância, mas aproveito o fato de mencionar aqui tuas referências teóricas iniciais para contar que você começou estudando farmácia que logo abandonou, passando a cursar filosofia na Sorbonne, e que tampouco completou. Neste contexto, como muitos de tua geração (da qual Fanon faz parte, sendo, como Gilles, cinco anos mais velho que você), você foi marcado pelo pensamento de Sartre e, depois, pelo de Lacan, com quem fez tua análise. Diga-se de passagem, você foi um dos alunos mais apreciados por Lacan em seus seminários, o que ficou abalado a partir da publicação de O Anti-Édipo.

xxxiv Félix, terei que falar aqui sobre Tosquelles para aqueles que não o conhecem. Me desculpe, mas nesta nota, que será a última, vou me alongar um pouco, dada a importância de sua figura para a construção de uma orientação micropolítica da clínica, teórica e pragmaticamente e, também, pela importância que ele teve em tua formação, bem como na de Fanon. Pois bem, ele era um psiquiatra anarquista catalão que se exilou na França após a vitória do franquismo, por sua participação na guerra civil espanhola. Em seu exílio, trabalhou no hospital Saint-Alban, onde seguiu desenvolvendo uma concepção e uma prática de psiquiatria que ele já havia começado bem antes em outros contextos, entre os quais, a frente de batalha na guerra civil espanhola, como médico-chefe dos serviços psiquiátricos e, já em seu exílio na França, um campo de concentração em plena Segunda Guerra Mundial. As leituras de Freud, Reich e Marx e sua experiência como militante político, o levam à consciência de que clínica e política são indissociáveis, o que gera sua concepção das práticas em ambos domínios. Tal concepção que, posteriormente, veio a ser chamada de “Psicoterapia institucional”, marcou o início da prático clínica, tanto de Fanon, como de Guattari. Foi inspirado na experiência de Saint-Alban, onde Fanon permaneceu de 1950 a 1951, que ele desenvolveu seus trabalhos como psiquiatra, por exemplo, num hospital do exército francês na Argélia, de 1954 a 1957, época da fundação da Frente de Libertação Nacional, na qual Fanon se engajou. É também inspirado nesta experiência que Jean Oury criou, na França, a clínica de La Borde, em 1953, depois de sua passagem por Saint-Alban, de 1947 a 1949. Guattari trabalhou em La Borde, de 1956 até o final de sua vida. A Psicoterapia institucional teve vários desdobramentos clínicos e políticos, tanto pragmáticos quanto teóricos, em Fanon e em Guattari, mas não só neles, pois ela foi um dos disparadores da revolução na Psiquiatria que se deu na Europa nos anos 1970 e se espalhou por muitos outros países, tendo forte influência também na Pedagogia e, mais amplamente, no trabalho com as instituições em geral.