Dossiê Terras Indígenas Brasil

II Encontro Virtual sobre Liberdade de Expressão: Liberdade de expressão dos Povos Indígenas

— Seminário promovido pelo Conselho Nacional de Justiça com apoio da Comissão Arns — 23 de agosto de 2021

Eduardo Viveiros de Castro

1. A questão da liberdade de expressão dos povos indígenas, para além das recentes e repugnantes iniciativas da FUNAI de atacar a liberdade de expressão de lideranças indígenas, diz respeito primeiro de tudo à liberdade dos povos indígenas de continuarem a ser indígenas, de continuarem a exprimir sua indigeneidade, exercendo os direitos originários que lhes são reconhecidos pela Constituição Federal de 1988 no caput do artigo 231.1

2. O nome da mobilização indígena que está acontecendo nestes dias em Brasília é eloquente.2 Pois se trata de fato de uma luta pela vida. Uma luta de resistência à verdadeira ofensiva final lançada contra os povos indígenas, que agora inclui a arma da pandemia, acionada pelo gatilho da incúria, da incompetência e — impossível não suspeitar — de um sinistro oportunismo genocida. Essa ofensiva tem múltiplos objetivos, desde o mais odiosamente supremacista, que é a consumação do projeto de extinção de todas as identidades coletivas infranacionais (ou supranacionais), em nome de uma homogeneização cultural e racial sob a tutela dos que se pretendem ser as encarnações da civilização ocidental, até o objetivo mais grosseiramente ganancioso, que é a redução da máxima extensão possível de terras públicas do país — de todos os bens públicos, de fato — com vistas a uma privatização idealmente integral do território nacional e de seus “recursos”, e aparentemente de todas as funções e deveres do Estado. Nada mais será público na república.

3. A CF decerto não é perfeita (penso na porta deixada aberta pelo art. 142 a um golpe militar “constitucional”), mas representou um avanço histórico inédito e gigantesco no que concerne à garantia de direitos coletivos, como se constata na leitura do Título VII (Da Ordem Social), do qual cada um dos oito capítulos é hoje alvo de um processo de destruição sistemática por parte das forças no poder: a saúde; a previdência; a educação; a cultura; a ciência; o meio ambiente; e, por fim (sempre por fim), os povos indígenas.

4. A história dos últimos trinta anos foi marcada ao mesmo tempo pela efetivação das conquistas trazidas pela CF, que literalmente mudou o rosto do país, e pela determinação maligna e rancorosa, manifesta pela larga fração predatória da elite nacional e por diversas iniciativas na esfera dos Três Poderes, em neutralizar, reverter e liquidar tais conquistas. Essas iniciativas atingem hoje um máximo de intensidade, e uma licença governamental (mais que isso, um incentivo) parece ter sido concedida para invadir, devastar, matar ou deixar morrer a população indígena — e não só ela. O Haiti é aqui, como cantou Caetano Veloso. Eu acrescentaria: para os povos indígenas, a Faixa de Gaza também é aqui. Ou pior.

5. A campanha para desmontar os artigos mais progressistas da Constituição, na verdade, começou antes de sua promulgação. Em 1987, o jornal O Estado de São Paulo publicou durante uma semana reportagens de capa, com grandes manchetes caluniosas, contra o Conselho Indigenista Missionário e outras instituições, para atacar os direitos indígenas na Constituição em construção. A campanha do Estadão não perdeu nada, lamento dizer, de sua atualidade. Ontem, o mesmo jornal publicou duas páginas de matérias p(r)agas, prometendo o caos se a tese do marco temporal for rejeitada pelo STF. Como se o caos já não estivesse instalado.

6. Sabemos que a tese do marco temporal remonta ao casamento entre interesses contrariados do agronegócio e de alguns setores das forças armadas, por ocasião da criação de da TI Raposa Serra do Sol. Não surpreende que grandes empresários, alguns deles instalados na Amazônia nos tempos da ditadura com o estímulo de gordos subsídios, busquem a extinção de direitos que garantem que as as terras de posse tradicional indígena permaneçam bens inalienáveis da União. Surpreende, porém, que membros de instituições que “se destinam à defesa da pátria” (CF, art 142) defendam na verdade coisa bem diferente, a saber, a entrega de terras públicas à grilagem, ao desmatamento, ao fogo, à especulação fundiária e a uma produção agropecuária que não visa e nunca visou garantir a segurança alimentar da população.3

7. Ao congelar a situação das terras indígenas em 1988 (e recordemos que o prazo de cinco anos para finalizar as demarcações das terras indígenas não foi cumprido, como não o foi depois de 1973, como estipulado pelo morto-vivo Estatuto do Índio)4, a tese legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição, em especial durante a ditadura. Além disso, ela ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas não tinham autonomia para lutar judicialmente por seus direitos. Esses povos diziam, em manifestações e mobilizações após a promulgação da Constituição: “Nossa história não começa em 1988”. Pois bem, a tese do marco temporal quer que a história dos povos indígenas acabe em 1988. Pretende que a história pare ali.

8. Considerem o absurdo de um direito originário que só vale até uma certa data. A tese do marco temporal congela uma situação multissecular de expoliação territorial, transformando-a em “direito” (inclusive com insinuação solerte de “privilégio”). Ela equivale a recusar aos povos indígenas seu futuro; a expulsá-los da história como agentes, relegando-os ao passado. A intenção mal oculta de tudo isso é fazer com que os povos originários desapareçam aos poucos como povos. Aos poucos ou rapidamente, porque há pressa: é preciso acabar com tudo antes que tudo acabe.

9. “Nem um centímetro a mais”, disse o presidente eleito em sua campanha: nem um centímetro a mais para as terras indígenas, para terras quilombolas, para unidades de conservação. A tese do marco temporal coincide espantosamente com os objetivos e valores professados pelo atual mandatário supremo da nação. Guardemos bem isso.

10. A anulação de terras indígenas com base em um marco temporal de o5/10/88, como observou a advogada Juliana de Paula Batista, torna regularizáveis todas as invasões recentes. Isto é uma distorção radical do direito originário, anulando o 6º do artigo 231. Extingue-se a tese do indigenato? Reedita-se o Requerimiento, a infame ordem de despejo lida pelos conquistadores espanhóis diante dos povos indígenas?5 Com que direito moral (se me permitem a expressão) se recusa aos povos indígenas os seu direitos constitucionais? Como ousam?

11. E cabe perguntar: quantos brasileiros não-indígenas têm sua vida melhorada a cada centímetro de terra que se recusa aos povos indígenas? A vida de quais brasileiros? Ou, aliás, e também, a vida de quais estrangeiros? Quem lucra com o esbulho das terras indígenas? A preocupação dos autodesignados tutores da nacionalidade com a “internacionalização da Amazônia” parece sempre mirar nos povos originários. Enquanto isso, há mais de 28 mil propriedades de terra em nome de estrangeiros. Juntas, essas áreas somam 3,617 milhões de hectares, uma área do território nacional quase equivalente à do Estado do Rio de Janeiro. Pela lei, estrangeiros podem adquirir ou arrendar até 25% da área territorial de cada município, e estão presentes em 60% dos municípios brasileiros. Mas o perigo são os indígenas, isto é, os menos estrangeiros de todos os habitantes do território nacional.

12. E por fim… Enquanto se discute a validade da tese do marco temporal, os “marcos temporais” do processo de legalização da grilagem das terras da União só fazem andar para a frente. O PL 2.633/2020, o “PL da Grilagem”, estabelece que as terras ocupadas até 2008 (por que não só até 05/10/1988?) podem ser regularizadas, mas prevê que áreas de ocupação posterior possam ser legalizadas por licitação, com regras definidas por … decreto do Poder Executivo!6 Sabemos todos o que isso pode significar do ponto de vista de uma explosão da invasão de terras públicas na Amazônia e do consequente aumento do desmatamento, com os efeitos, agora impossíveis de ignorar, sobre a estabilidade climática do país. Sabemos todos o papel fundamental que as terras e os povos indígenas desempenham na manutenção do equilíbrio dinâmico do ambiente amazônico. A tese do marco temporal não leva em conta o tempo em que vivemos — ela trabalha contra a corrida contra o tempo, contra o escasso tempo que temos para garantir que o planeta continue habitável para a espécie humana.

 

1São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”

3 41% dos brasileiros (84 milhões) convive com algum grau de insegurança alimentar, 9% destes com a fome pura e simples.

4 Disposições Transitórias da CF 1988, art. 67. “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.” Em 1973, o Estatuto do Indio determinava o mesmo prazo. Em 1988, repete-se o prazo, já que ele não fora cumprido nos 15 anos que separa o Estatuto da Constituição. Esse “marco temporal” não é respeitado.

6 Imaginem o barulho que faria a proposta de marco temporal com a mesma data da promulgação da CF, congelando todas as terras públicas que não eram então propriedade privada devidamente legalizada e registrada nos cartórios e cadastros competentes (CAR, CIR, verificação de APP etc).

NÓS SOMOS UMA AVE QUE ANDA, UMA AVE QUE SE DESLOCA E QUE FAZ CONTATO COM OUTRAS AVES

Por Cacique Babau Tupinambá (Rosivaldo Ferreira da Silva)

Em conversa com Mariana Lacerda e Patrícia Cornils

Marco Temporal1

Absurdo não se explica. Quando é golpe, não se explica. Podemos fazer uma correlação. Para caçar o mandato de Dilma, aquilo ali estava explicito que foi machismo, se fosse um homem não tinha acontecido nada. Inventaram o crime de pedalada para que ela fosse cassada. Então é uma questão similar e que está sendo posta aos direitos indígenas. Não importa o que está certo ou errado, esta é a linha que estamos tendo agora neste país. Eles querem meter a mão, muitos estão vendo a chance de enriquecer com as terras indígenas. As terras indígenas são garantidas pelo Estado, e em nome desse Estado eles podem invadir, roubar, fatiar, e ao mesmo tempo recebendo a proteção do Estado. A gente tem que fazer a leitura como ela é. É um fatiamento do país com a proteção do Estado. São várias Leis, várias PECs [várias Propostas de Emenda Constitucional], para amedrontar e o povo lutar pouco pelos seus direitos.

Cabruca

Onde é que está na Constituição que os índios não podem explorar suas próprias terras? É tão garantido o direito de explorarmos as nossas terras, que é usufruto exclusivo. Um direito inalienável. Florestas, lagos, o capital é nosso e muito bem garantido. O que se deve clarear é um dispositivo que tem quando se trata de mineração. Lá no artigo 231, no parágrafo 4, se eu não me engano, e que trata de mineração em terras indígenas, então fica lá: para o Estado poder usar o minério das terras indígenas, tem que usar o artigo subsequente, que é para a Câmara dos deputados e Senado criarem uma comissão, ir para a aldeia, ouvir os povos indígenas, se aquele povo for favorável a minerar, aí o Congresso vai criar projeto de lei dizendo quanto os indígenas vão ganhar de participação nos lucros. É isso que eles não querem. Durante o governo Lula, houve a discursão para a regulamentação deste artigo. O que a lei diz é isso: pode. Mas nós queremos 25% da participação nos lucros. Pronto. Ai o governo Lula bateu o pé que não aceitava. Agora o que Bolsonaro está fazendo é querer mudar a lei para que a gente não tenha acesso a nada. Mas o que a Constituição diz não é isso. É o Estado que é dono da riqueza do subsolo, sendo que nós indígenas temos que ser participantes nos lucros, e o Estado tem que se obrigar a coordenar isso, cuidar dos locais, deixar reflorestado. Todo passivo ambiental teria que ser corrigido.

Cada um de nós, índios, produzimos em nossas terras. Nós lidamos com mandioca, banana, cacau, todo tipo de fruta, e ainda pescamos e caçamos. Mas a maioria de nossas hortas são debaixo da floresta. É um consórcio entre floresta e roça. Nós temos problemas com o Estado porque eles querem só uma coisa. E nós temos roças consociadas. Aqui na Bahia nós tivemos um enfretamento porque existe uma resolução que cada horta tem que ter só um tipo de lavoura. Mas toda vida nós trabalhamos consorciado, a floresta, o cacau, a banana, a laranja, a pimenta, tudo no mesmo espaço. A mesma área produz diversos tipo de agriculturas. O que é chamado de cabruca, a gente sempre plantou assim. Na nossa roça de mandioca tem pimenta, cana, tem o aipim que é uma espécie de mandioca mansa, tem batata. Em uma área com uma só lavoura, você tira os nutrientes da terra. Com várias plantações consorciadas, uma tira mas a outra devolve. Nós sempre plantamos mandioca e feijão, enquanto a mandioca está tirando nitrogênio da terra, o feijão está devolvendo. Por que nós vamos aceitar o plantio do agronegócio? No Pará, somos bem sucedidos catando coco de babaçu dentro da própria floresta, encontrando sua sustentabilidade. Por que pegar uma terra para criar do zero um plantio que a cada três meses tem que fazer um novo? Nós continuamos colhendo na mesma roça. E não queremos toda vez ficar fazendo a mesma coisa.

Tem muitos indígenas na região do sertão aqui, eles têm água, eles produzem leite, queijo, gado. Nós estamos agora fazendo a criação de gado semiconfinado, onde nós estamos plantando o capim de corte, que nós não gostamos de gado extensivo, e alimentando e tirando o leite e o bezerro quando cresce nós matamos e comemos. Não atinge a natureza em nada que ela esteja produzindo…Temos mais de 250 mil pés de banana da terra. Mas não é interesse nosso colocar essas bananas no comércio, porque a gente entende que estamos na floresta, e que se nós tirarmos tudo, os animais não vão ter como se alimentar. Se nós vendermos toda a banana, e todo o mamão, o que vai alimentar os pássaros? Se alguém não fizer plantio assim, para alimentar, vai matar os animais de fome na floresta. E as pessoas não estão discutindo a produção e ao mesmo tempo a proteção da natureza. Os Truká, por exemplo, na divisa da Bahia com Pernambuco, eram o maior produtor de arroz do Nordeste. Aí vai o governo Lula, e que estava do nosso lado, draga o Rio São Francisco, baixa a água e eles não puderam mais plantar mais nada. Eles eram também o segundo maior produtores de cebola. E quem foi que faliu os índios? Os governantes do Nordeste dragaram o rio para levar não sei para onde, a água baixou, e não se pode produzir mais em quantidade de cebola como eles produziam. Quem faliu nós? Os Pataxó Hã Hã Hãe produzem aqui por dia mais de 25 mil litros de leite, para uma comunidade é bastante coisa. Mas tem algum incentivo de governo para produzir isso? Não tem.

O Marco Temporal começa em 1500.

O Marco Temporal é mais um componente deste trator que eles querem passar. O Marco temporal ele entra em tudo isso. Não é de agora que o agronegócio brasileiro defende que os índios não são mais os índios de 1970, quando criaram a lei 60012. O que a gente percebeu já no governo Dilma? Quando Lula libera vagas nas universidades, e faz financiamentos para que nós povos indígenas pudessem frequentar as universidades, e foi se formando muitas lideranças em vários aspectos, eles perceberam que no Brasil inteiro os índios começaram a montar uma economia organizada. A economia organizada significa que os índios melhorariam de renda e estavam sabendo lidar com o comercio. Isso alertou eles que, baseados na Constituição brasileira, nós podemos dar um avanço maior. Nós podemos ter uma autonomia diferente. E daí eles estão querendo ferrar como antes. Aí eles querem bagunçar tudo. Bagunçar mesmo. Pronto, [índios] só passam a ter direitos a partir de 1988. A questão do Marco Temporal significa que você vai ter que alterar a Constituição inteira. A constituição brasileira cai, e o Supremo sabe disso. Eu tenho certeza que o Supremo sabe disso. Se eles votarem a Marco Temporal como tal, a Constituição Brasileira precisa ser refeita. Os artigos indígenas estão em Cláusula Pétrea. Posso estar enganado, mas na Cláusula Pétrea no Brasil foi definida a separação dos poderes. Entre a separação dos poderes, tem a separação de Cláusula Pétrea que é dos Estados Brasileiros. E cada Estado tem votação e suas responsabilidades. Quando você pega os artigos 231 e 232 da Constituição, e está ali: qual é a função do Executivo? É demarcar, proteger e fazer valer os direitos. O Judiciário tem que vigiar esses direitos indígenas, tem que interpelar e acompanhar a manutenção desses direitos, está lá. Dá a função do Congresso Nacional, o parágrafo 5º é especifico do artigo 231, está bem claro o que tem que fazer o Congresso Nacional. Para fazer tudo isso que eles estão dizendo, eles têm que refazer a Constituição. Aí você pega todas as constituições desde o tempo do Império, têm garantido os direitos indígenas. Se você for pegar a carta de Pero Vaz de Caminha, eles chegam no Rio Mutá, exatamente em Coroa vermelha, onde deu condição deles descerem, ao entrar no Rio Mutá, eles se encontram com indígenas. Eles contam que só tomaram posse da terra no momento que eles colocam a cruz e celebram a primeira missa, então eles declaram nessa celebração, tomando posse da terra, que estava lotado de índios ao redor, assistindo. A invasão foi confirmada ali, naquele momento. Como é que agora isso vai ser esquecido? Não está lá escrito que algum indígena atacou nesse momento. Os indígenas ficaram observando e olhando. Mas depois que botaram a cruz, eles fizeram ataque aos povos indígenas. A primeira ação após a colocação da cruz e que não é falado é que eles identificaram que o solo era fértil. E aí começaram a pegar os primeiros índios para fazer plantio para eles, logo em seguida. Eles escravizaram, eles perceberam que nós fazemos roças, descobriram nossas roças e começaram a ver que a lavoura era pujante e que os índios podiam ser utilizados. A narrativa dos primeiros seis meses foi isso. O segundo seis meses, eles estavam em Porto Seguro, e aí desceram. Chegaram em Ilhéus, os Tupinambá mataram os primeiros. Os Tupinambá de Coroa Vermelha já tinham descido e já tinham alertado os de cá, que ficaram esperando para o enfrentamento. Estamos falando aqui de coisas que foram os brancos que escreveram, não foi o Cacique Babau falando. Eu estou lembrando a escrita deles. Depois vem as leis subsequentes: a Capitania de São Jorge dos Ilhéus, e também a de São Salvador determinaram a destruição dos Tupinambá. Porque os Tupinambá estavam reagindo. E isso foi a Coroa Portuguesa que declarou que os Tupinambá eram inimigos porque não deixavam a Coroa Portuguesa tomar posse das terras que pertenciam a ela por ordem de deus. Mas dentro de toda essa luta, eles reconhecem que nós poderíamos ter o nosso território, o direito da existência nossa.

E aí a maldade que foi pensada, porque esta lebre foi levantada no Julgamento de Raposa da Serra do Sol. Se eu não estou aqui enganado, o ministro do Supremo ele criou as 19 condicionantes.3 E é por isso que eu digo: às vezes uma vitória é uma derrota. Porque um voto dele mais valia que não tivesse votado. Porque foi ele que disse no voto dele que o direito originário e exclusivo não poderia ser tão assim. Ele foi instruído a fazer isso. Ele criou uma regra que em Raposa da Serra do Sol não poderia criar mais de 45 mil cabeças de boi. Ou seja, o branco pode criar tudo, mas o índio tem que ser limitado. Foi ele que disse que a terra não podia ser totalmente explorada pelos indígenas, e ele disse que tinha que ter um marco que definisse o direito dos índios, foi ele que ressuscitou isso, e a partir daí a vida do índio virou um inferno. Aí começaram a entender que poderiam destruir nós, índios. Mas não podem. Por mais que tentem, pois nada disso se aplica. O direito à vida e à existência, ele é ancestral, ele é anterior. Você sabe o que é ter uma lei que diz que o direito de existir é só a partir de 1988? E o que é que você vai fazer com os mais de cem povos indígenas isolados que não sabem nada dessa lei? E que tá lá sem fazer luta nenhuma? Ela é contraditória em si. Como é que fica a carta de Pero Vaz de Caminha, a invasão do Brasil, ela deixa de existir? Ela passa a ser uma continuação contínua, europeia, no Brasil desde sempre? Anterior a nós?

Guerra

Se vai votar o Marco Temporal, então vamos votar um marco que diga que todos os países que invadiram o Brasil e que provocaram o genocídio indígena, aí sim, criar uma lei que talvez possa nos ressarcir pelo genocídio continuo de 1500 até aqui, pois nunca parou. E agora o Marco Temporal quer apenas excluir o genocídio, e igualar direitos com o invasor, não, isso não se pode. O PL 490 aprofunda o genocídio e pelo menos cerca de 100 povos isolados podem ser extintos.

Nós somos um povo que somos como os animais da floresta, muito tímido e reservado, nós não nos entregamos a qualquer preço. Significa que os isolados vão fugir a tal ponto que vão morrer, por não aceitar contato. Alguns vão aceitar porque já têm contato, os Morubo, por exemplo no Vale do Javari, têm grupos que podem aceitar o contato e talvez não sejam extintos. Mas os outros que não querem contato, vão ser extintos. Elas sabem da existência disso tudo aqui. Eles vão morrer e não vão fazer o contato.

Por exemplo, os Tupinambá da Serra do Padeiro, se aplicar qualquer lei dessas leis que estão sendo expostas eu garanto que o tronco principal Tupinambá prefere ser extinto do que aceitar a imposição do Estado. Nós nunca aceitamos, desde a invasão portuguesa até hoje. É tanto que o Tupinambá não tem terra demarcada até hoje, porque nunca concordou com o Estado. Nós não vamos concordar de chegarem aqui e nós darmos as nossas terras para o agronegócio usar. Com certeza nós vamos para guerra. Se tiver mineração aqui, nós não vamos aceitar. O Estado vai entrar com a sua polícia e vai nos matar, e vai ser guerra. Vai ser ruim, nenhum povo vai aceitar. Porque nunca aceitou. Os povos que são mais espirituais vão optar por serem extintos do que ceder. Os povos que abandonaram suas culturas ancestrais e estão pelas evangélicas ou por outras, esses aí vão aceitar e vão ser usados para atacar os que não aceitam, e vão dizer que é uma guerra entre povos, que foi assim que sempre fizeram para ganhar espaço. Isso está claro.

Encantados e o tempo pela vida

Na defesa dos índios isolados e dos que mantêm a cultura, os encantados estão cada vez mais forte um pouco, isso já está inclusive gerando problemas. Porque conversando com alguns parentes, eu digo assim, os brancos dizem que existe a esquizofrenia. As pessoas ouvem vozes. Os povos indígenas sempre conversaram com os espíritos, sempre dialogaram com eles. Mas no mundo dos brancos, dão o nome disso de esquizofrenia, para retirar o dom do outro conversar com algo que não se enxerga. Muitos povos indígenas estão à flor da pele e estão cada vez ouvindo mais. Até os da cidade que não sabiam que eram índios começaram a despertar e a ouvir vozes e ver coisas que outros não veem. Este é um momento difícil e eu tenho evitado porque cada vez que a gente falar, os encantados ficam mais poderosos. Então a gente está deixando o rio seguir o seu caminho, para não forçar.

Nos Tupinambá entendemos que tudo que nos cerca é vida, e toda vida tem direito. Uma cumprimenta a outra, não tem aonde Tupinambá estar e extinguir a vida no seu entorno. Para nós o vento é vivo, tem o guardião das aldeias do vento, a água é vida, tudo para nós é vida. Tudo tem espirito e todos os espíritos dialogam. Então para a gente se alimentar, para a gente comer a gente sabe que tem protetor e tem dono, não dono como o branco pensa, mas aquele que protege, que cuida. Aí você vai para o rio e tem Janaína que cuida de toda essa parte mas ela sabe que aquele peixe é fundamental para a gente. E a gente comunica tudo por energia. De vez em quando eu falo que o ser humano se acha tão importante, mas ele é um animal. Nós somos uma ave que anda, uma ave que se desloca e que faz contato com outras aves. A comunicação entre as espécies todas é por uma energia subterrânea, pela terra. Uma folha alimenta a outra. Nosso espírito é imortal, não morremos, a carne é só um detalhe para nós. São situações de conhecimentos diferentes, práticas diferentes, mundos diferentes. Quando essas pessoas falam “o Congresso é o dono e vai determinar quem usa o minério”, para nós o dono dos minérios é o Encantado Lavriano, um irmão Tupinambá, ele é responsável, ninguém pode tirar nada, ele é o dono e se você invadir sem pedir licença a ele… nós sabemos que tem coisas muito ricas, os palácios de ouro que ficam no fundo do mar para os Tupinambá, que sempre gostam muito do mar.

Lavriano é esse encantado que ensinava a gente, e os Maias e muitos outros povos, como fundir os elementos da natureza e fazer espadas. Esse encantado é que ensina como fundir o ferro e fazer espadas de ouro, de prata, que são especiais e têm cargas de energia. Tem energias diferentes e que controlam a acidez da terra, mantem os elementos. É confuso. A gente só ouve e deixamos há muito tempo de querer praticar isso, porque eu acho que é perigoso Tupinambá chegar e fazer guerras perigosas. A gente cuida só da natureza, não há necessidade maior do que cuidar da vida, a mente Tupinambá é poderosa o suficiente para neutralizar o homem, é melhor a gente não fazer. Lavriano tem poderes de sobra para impedir outras forças, tem muitos outros Encantados e outras forças, eles conversam conosco, eles nos ensinam muito, e nós temos que deixar o homem branco sem destruir os povos.

A gente tem conhecimento das coisas pelos espíritos dela, e que contam para a gente. Aí a gente sabe que o Encantado Ventania vai mostrar como ele tem força e vai cair uma árvore ali, o vento passa e de repente uma arvore cai, só uma. Ele sabe o que quer fazer. Quando vem um tsunami e dizem que o culpado foi um terremoto. Não, engano, apenas o dono que governa, ele foi ofendido. E ele mandou a resposta. Se a pessoa fosse humilde e soubesse conversar, não aconteceria nessas proporções. Agora achar que o Congresso vai determinar o uso da floresta, uso dos rios, uso do mar, uso de não sei o que… não vai muito longe isso. A Terra não vai muito longe se ficarmos achando que somos donos. Nós somos usuários. E agora nós achamos que somos donos do universo, que o universo vai nos obedecer. Se fosse para todo mundo falar a mesma coisa, nós falávamos a mesma língua, tínhamos a mesma crença, e era tudo de um jeito só, uma coisa só, não tinha nem homem nem mulher.

Nas florestas existem encantos masculinos e femininos, por que será? Por que nós somos orientados dessa forma como eu estou falando? Fazer um manto4 ligando o povo da terra ao povo do céu, às estrelas? Por que cada guerreiro Tupinambá tem que usar o endoape nas costas para guerrear? Porque para quando morrer em guerra o espirito dele não ficar na terra. Porque nós, Tupinambá, não somos da terra. A carne é que é da terra. Tinha que estar o chefe maior com o manto, e os guerreiros com os endoapes porque caso eles morressem, o espirito dele não ficariam na terra, e vão para a casa dos Encantados. A gente continua acreditando nessas questões.

E por que ao mesmo tempo nós temos pedras para nos ligar ao centro da terra, aos povos que vivem embaixo da terra? Por que se conversa com Tupinambá em dois polos diferentes e nós somos intermediários? Tupinambá não é da terra, e a troco de quê? Só porque quer confundir as nossas mentes? Não acho que Encantado nenhum tenha interesse de nos dar informações nesse nível para confundir nós. É complicado, é muito confuso. Eu gosto de ficar em casa, sem ter que falar muito aí fora sobre quem nós somos.

Rosivaldo Ferreira da Silva, mais conhecido como Cacique Babau, da aldeia Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena Tupinambá de Olivença (sul do Estado da Bahia), é um dos nomes mais importantes entre as lideranças indígenas, reconhecido pela sua atuação na denúncia das violações de direitos indígenas. Está inserido no Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos (SDH/PR) por ter sido preso quatro vezes ilegalmente e sofrer constantes ameaças de morte. Recebeu a Comanda Dois de Julho (ALBA), a medalha Chico Mendes de Resistência bem como o título de Doutor Honoris Causa da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), títulos que reconhecem o engajamento e a atuação do cacique Babau na luta pelo reconhecimento e pela garantia dos direitos indígenas mas também como defensor dos direitos humanos de forma geral, destacando-se na luta antirracista, na luta pela autonomia, autossuficiência e bem viver dos povos e comunidades tradicionais no Brasil.

1 O julgamento da tese do Marco Temporal acontece no dia 25 de agosto de 2021 e tem repercussão sobre todos os povos indígenas do Brasil. https://apiboficial.org/2021/06/29/entenda-porque-o-caso-de-repercussao-geral-no-stf-pode-definir-o-futuro-das-terras-indigenas/

2 De 1973, “regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”.

3 Sobre as condicionantes do julgamento de Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/stf-decide-que-condicionantes-so-sao-obrigatorias-para-ti-raposa-serra-do-sol-rr

4 Para saber mais sobre o Manto Tupinambá, ver https://www.n-1edicoes.org/curar-o-mundo-sobre-como-um-manto-tupinamba-voltou-a-viver-no-brasil?#scrollTop=0